Era a nonagésima oitava noite de serenata, a penúltima da estação. E a mestra Moeg'Tullam atrasou por quase quatro horas. Justo no primeiro enfrentamento entre Yorranna e Tíwaz, como combinado noites antes.
Quando chegou, trazia consigo a foice inteira em carbono negro, do longo cabo à lâmina preta.
Entregou como presente a Tíwaz. Devido à emoção o garoto não encarou a mestra, pois, se o fizesse, as lágrimas seguras desceriam.
Nomeou-a o Beijo, conseguindo irritar a mestra de forma inesperada.
— Maldição, é o nome de cada caminho de poder vampírico, e é ofertada por cada uma das dezesseis Funestas Territoriais conhecidas. O primeiro passo é sempre o mesmo, a transformação vampírica que transfigura o corpo. Cada passo é aumentado após se ouvir o sussurro da Funesta regente da maldição. O máximo de passos alcançados é sete, até onde se sabe. Não é necessário que o vampiro venha do mesmo território da Funesta, pois a maldição do vampiro liga-o à Funesta por sangue. Por exemplo, alguém, de família antiga que há milênios viveu em Nova Fronteira, pode ter descendentes em Vales Férreos, logo, quando transformado, o vampiro possuirá a maldição da Funesta de Nova Fronteira, e não da Funesta de onde vive atualmente. Apesar de algumas maldições e passos terem sido expostas no Ultimato, a maior parte dos passos além do terceiro são secretos. Por fim, também existe a sobreposição de maldição. O humano pode ter uma maldição inata, e essa pode ser substituída pela maldição da fhauren que o transformou. Quantos passos você alcançou Yorranna?
— Dois.
— Resposta errada, nunca revele seus poderes. É preferível perder, até mesmo o Ultimato, do que revelar qualquer um dos passos alcançados, sobretudo, de três até sete. — ao ouvir a mestra, Yorranna fechou o rosto por ter falado a verdade.
— E você, Tíwaz?
— Um.
Os olhos de Moeg'Tullam acenderam vermelhos, e ela se irritou:
— Não acabei de dizer para não revelar isso, não está prestando atenção?
— Confio em você, mestra.
— Nessa vida, criança, todos são inimigos. De qualquer forma, esse é o comum de qualquer vampiro recém-transformado. Como as fhaurens nascem vampiras, elas descobrem como compreender a própria aura desde pequenas, por isso lhes é mais fácil ouvir os sussurros.
— Sinto muito. — lamentou Tíwaz.
— Cessai de sentir e começai a esforçar-se. O torneio é amanhã. Tíwaz, preparar-se-á com o que tendes, e Yorranna, você tem que vencer as suas lutas, na derrota não existe nada que eu possa fazer para te proteger.
— Sei disso. — a fhauren resmungou, apática.
— É a sua vida! Está em suas mãos! Olha para mim. Você não vai desistir. E Tíwaz, há uma forma de a ajudar.
— Como?
— Evolua, permaneça transformado, extraia sua aura por completo, e leve-se ao limite. Cada humano transformado tem o próprio ritmo, mas, mesmo bebendo de meu sangue, você ainda é mais humano que vampiro. No entretanto, se a vencer num torneio oficial, terá a mão dela. Nesse caso, precisarão te vencer, e, exceto pela Lei da Humilhação, terão de vencer Yorranna. Isso pode nos dar alguns dias entre os conflitos, para estudos sobre o adversário.
— Dedicarei minha vida a isso.
— Não espero menos. — e Moeg'Tullam bradou. — Em posição! Comecem o treinamento, levem a sério, sem descanso! Lutem!
Separados por dez passos, Yorranna e Tíwaz saltaram para frente, visando o ataque.
Ela tinha mais experiência, transformando o corpo cuja pele refletia em dourado, abrindo a guarda, confiante. A feição dela adquiria contrastes obscuros na pele transfigurada.
O plebeu notava a velocidade aumentando, e tinha na arma a vantagem. A foice era incomum o bastante para fazer até Moeg'Tullam pensar antes de se defender. Se ele tinha pouco treinamento, seria o mesmo para quem o enfrentasse.
No caso de Yorranna, o conhecimento de foices longas era zero.
Assim quando ele se abaixou, e rodou o cabo por cima das costas, ela pensou de forma lenta, e usou o florete, a Asa do Oriente, para defletir o golpe.
A outra arma da fhauren, a Batismo da Esperança, jazia enterrada no teto daquele mesmo salão de treinamento, refletindo o embate.
Tíwaz levantou e passou a arma de uma mão para outra, atacando de forma não previsível, numa distância que o deixava seguro contra o florete de jade.
— Yorranna, se isso acontecer no torneio de amanhã, você estará na cama de um velho imundo no primeiro dia da estação de silêncio! É isso o que deseja? Ser deflorada por um porco em corpo humano?
Irritada ouvindo as provocações da mestra, Yorranna liberou mais aura, transfigurando o corpo que cresceu de tamanho, ultrapassando a altura de Tíwaz.
Adequou-se ao padrão de ataque do duo, golpeando a lâmina negra da foice, avançando e visando a estocada no ombro do garoto.
Por sua vez, Tíwaz usou tudo o que possuía de força, com as duas mãos no cabo da arma, a girando, e com a lâmina ficando na altura das costas da fhauren, ele puxou.
Ela saltou desviando.
No ar, com a foice passando abaixo de seu corpo, Yorranna viu o novo movimento, com a lâmina em meia lua agora apontando para cima.
Foi o tempo dela golpear a arma inimiga, e cair, jogando a própria Asa do Oriente contra o rosto de Tíwaz.
Tendo a ponta da arma batendo contra o chão, e o florete irrompendo o ar na direção dele, moveram-se as mãos humanas, jogando o cabo da foice para cima, acertando o florete no ar.
O desvio foi de milímetros, balançou os cabelos mel dele, enquanto a arma de Yorranna atingira o lago raso ao fundo, e a foice caíra no chão entre ele e ela.
Abaixou-se o humano, e quando tocou o cabo da arma no chão, não a levantou, Yorranna pisava acima da lâmina, correndo na direção do menino.
Com o chute no rosto de Tíwaz, ele foi lançado para trás.
O impacto do chute distorceu a pele dele, que cuspiu sangue, e urrou, regenerando o rosto quebrado.
Ele se arrastava nas rochas antigas, até que sentiu o braço no pescoço, e, num mata-leão, ela o asfixiou.
Ele distorcia o corpo como podia, com o rosto adquirindo feições não humanas, a pele era coberta de pelos cinzentos, com os caninos proeminentes.
Tíwaz tentou levantar, queria pular de costas no chão, mas não conseguia respirar.
— Calma, é um treinamento… — tarde demais. Tíwaz desmaiou.
— Eu matei ele? — exausta, Yorranna, com os olhos lacrimosos, permanecia deitada ao lado de Tíwaz.
— Não, ainda não. Lamentavelmente, vocês estão no nível de qualquer primeiranista. — suspirou a mestra.
— Ainda estamos no primeiro ano, qual seria o problema? — Yorranna foi tomada de pensares conflitantes.
— O diferencial é que os dois têm problemas acima do primeiro passo de poder. Por outro lado, acho que não terminarão negativos. Gosta de caranguejos?
— Ca-ca-cararanguejos? Desculpa, eu ga-gaguejei. — a serva foi pega de surpresa pela aleatoriedade da questão.
— Ficam ótimos no clima de Infinito Branco. Marés entre Nuvens está quase terminando de atravessar o Estreito, mais ao norte há apenas o polar.
— Espera, e o Tíwaz?
O plebeu foi jogado na água, e, após instantes submerso ele despertou irritado, cuspindo água.
Tíwaz só se acalmou ao ouvir os planos da mestra, adorava os frutos do mar cultivados naquele andar, e toda comida parecia mais saborosa quando outros pagavam.
E juntos tiveram agradável jantar.
