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Chapter 23 - Capítulo 22 – O Sussurro das Correntes

A manhã nascia calma sobre a Cordilheira das Bestas Mágicas.Entre troncos antigos e pedras cobertas de musgo, o grupo caminhava em silêncio.O som de passos leves misturava-se ao vento — Lucius à frente, o olhar tranquilo; Friaren logo atrás, com um ar pensativo; Aurus, em sua forma reduzida, trotava com elegância felina; e sobre o ombro de Lucius, a pequena Fênix descansava, as penas rubras soltando pequenas faíscas douradas que desapareciam no ar como vaga-lumes.

O silêncio entre eles era natural — o tipo de silêncio que existe entre aqueles que se entendem sem palavras.Mas então, algo mudou no ar.

Lucius parou, erguendo a cabeça.Havia um som... distante, mas constante.Um murmúrio líquido que se confundia com o sussurro do vento.

"Água," disse ele, quase num tom de revelação.Friaren arqueou uma sobrancelha."Você ouviu isso de tão longe? Às vezes, acho que seus sentidos não são humanos."Lucius sorriu de leve. "E o Aurus também ouviu."

O lobo soltou um rosnado baixo — meio riso, meio aprovação — e seguiu à frente, guiando-os entre as árvores cerradas.

O caminho os levou a uma abertura entre as rochas, e o som tornou-se ensurdecedor.Ali, diante deles, erguia-se uma cachoeira colossal, despencando em um lago de águas translúcidas.O arco-íris formado pela névoa reluzia sob o sol da manhã.A natureza parecia viva, pulsante, consciente.

A pequena Fênix estendeu as asas e soltou um chilreio suave.Chamas tênues percorreram suas penas antes de se dissiparem em fumaça."É bonito..." disse ela com voz infantil, curiosa."Mas... é tão frio."Lucius olhou para ela e respondeu com serenidade: "Nem tudo o que é frio é vazio. A água também vive — só fala de outra forma."

Ele se aproximou da beira do rio e sentou-se sobre uma pedra lisa.Fechou os olhos.A respiração desacelerou, e o mundo pareceu desaparecer.Havia apenas o som da água, ritmado, eterno.

Friaren observava de longe, apoiando o queixo na mão.Ela o conhecia há anos... mas toda vez que Lucius meditava, tinha a estranha sensação de que ele estava ouvindo algo que os outros não podiam — algo vindo do próprio coração do mundo.

"...A água não luta," murmurou Lucius, os olhos ainda fechados."Ela apenas flui. Se cai, contorna. Se é bloqueada, acumula força e transborda."Ele mergulhou os dedos na correnteza."A essência da água não é a resistência, mas a adaptação.E, no entanto, é ela quem molda as montanhas."

A energia ao redor vibrou, quase imperceptível — um eco suave que Friaren sentiu na pele.Era diferente de qualquer magia comum.Era harmonia.

Lucius abriu os olhos. Dentro deles, o reflexo da cachoeira parecia se mover, como se o próprio fluxo o tivesse aceitado."A verdade profunda da água," disse ele baixo. "Fluir é compreender. Mudar é existir."

Friaren sorriu, cruzando os braços."Você e suas epifanias filosóficas... e eu achando que só tínhamos vindo procurar um bom lugar pra acampar."Lucius riu baixo."Talvez seja isso. Às vezes, o mundo ensina melhor quando não o forçamos a falar."

Ela o olhou de lado. "Então, se eu fosse água, o que seria?""Você?" Lucius desviou o olhar para o céu. "Seria uma tempestade. Linda, mas impossível de conter."Friaren virou o rosto, o rubor quase imperceptível sob a luz da cachoeira."Você fala umas coisas perigosas, sabia?"

Aurus bufou, com um som que lembrava uma risada grave."Vocês humanos são estranhos... um diz algo bonito e o outro parece pronto pra fugir."A pequena Fênix soltou um chilreio animado. "Eu gosto dela! Ela brilha quando fala com você, Lucius!"Friaren suspirou, rendendo-se."Até a passarinha está contra mim agora..."

O riso deles ecoou misturado ao som da cachoeira.O tempo, ali, parecia não correr.Lucius fechou os olhos uma última vez, sentindo o mundo girar em um ritmo sereno — como se as águas, o vento, o fogo da Fênix e até o silêncio de Friaren dançassem em uma mesma sinfonia.

Naquele instante, ele compreendeu algo mais profundo:A força das Leis não vinha do poder... mas do equilíbrio.E a água, em sua calma, continha a essência de tudo o que existe — vida, movimento e eternidade.

...

A água corria calma, riscando o leito das pedras com sons que lembravam palavras esquecidas.Lucius ainda observava a cachoeira, como se cada gota carregasse um segredo.O ar úmido envolvia o grupo, e Ignis, a pequena Fênix, tremulava suavemente, suas chamas diminuindo para não perturbar o fluxo ao redor.

Friaren se aproximou, os cabelos prateados colando-se levemente à pele pela névoa."Você ficou imóvel por quase uma hora.A cachoeira te contou algo que eu não ouvi, não é?"

Lucius sorriu de leve."Talvez. Ou talvez tenha sido eu quem finalmente ouviu o que ela dizia desde o início."

Ele estendeu a mão para o lago, e uma película de água se ergueu suavemente, moldando-se como um espelho líquido.Dentro dele, reflexos cintilavam — fragmentos de luz que se moviam como se tivessem vontade própria.

"A água," começou ele, "é a mais passiva das forças, mas também a mais constante.Não luta, mas persiste.E em sua persistência, ela defende, cura e purifica."

A superfície do espelho vibrou, e uma aura suave se espalhou ao redor.Friaren sentiu um arrepio — não de frio, mas de clareza.Lucius continuou:

"A essência das Leis da Água protege não só o corpo, mas a alma.Ela amortece a dor, dissolve a fúria, acalma o espírito.Um cultivador que domina a água pode se tornar quase imortal em resistência... mas raramente vence pela força.A água não foi feita para ferir, e sim para sustentar."

Friaren o observava em silêncio.Ignis inclinou a cabeça, os olhos dourados refletindo o brilho do espelho aquático."Então… ela é como você," disse a pequena Fênix com voz suave.Lucius olhou para ela."Como eu?"

"Sim. Você também não ataca primeiro.Mas quando o faz, o mundo inteiro parece se mover junto."

Aurus riu, mostrando os dentes."Parece que até as aves míticas percebem isso agora."

Lucius ignorou a brincadeira e voltou-se para Friaren."Você também tem afinidade com a água.Quer ver o que eu vi?"

Ela assentiu, curiosa.Lucius fez um gesto, e o espelho líquido se dividiu em duas superfícies menores, flutuando entre eles."Olhe atentamente.Não tente controlar.Apenas... sinta."

Friaren estendeu a mão.No instante em que tocou a água, a sensação a envolveu como um abraço frio e sereno.Ela viu — não com os olhos, mas com a mente — rios se abrindo em vales, mares engolindo ilhas, chuvas alimentando florestas.Viu a harmonia silenciosa do ciclo eterno.

Mas também viu algo mais: uma força que não era dela, e ainda assim a aceitava."É... tão calmo," murmurou. "E ao mesmo tempo... tão triste."

Lucius respondeu com voz baixa:"A água guarda tudo o que toca — memórias, emoções, vida.É o único elemento que lembra, mesmo quando o resto esquece."

Seris, pousada sobre o ombro de Friaren, olhou para o espelho e piscou."Então... é por isso que eu senti o ovo me chamar?Porque a água lembra, e o fogo renasce?"

Lucius a encarou por um instante, surpreso com a clareza de sua fala."Talvez," respondeu com um leve sorriso. "Talvez a memória do mundo corra nas águas... e o renascimento venha das chamas."

O espelho desfez-se em gotas, que caíram sobre o lago com som cristalino.O vento soprou, levando o brilho das águas de volta à cachoeira.Friaren respirou fundo, o olhar distante."Se cada elemento guarda um ensinamento assim... o caminho até a verdade final será mais longo do que imaginei."

Lucius olhou para o horizonte."O caminho é longo porque o mundo é vasto.Mas cada passo — cada rio, cada chama, cada vento — é parte do mesmo todo."

Ignis soltou um chilreio suave, estendendo as asas, e pequenas faíscas dançaram sobre o lago antes de sumirem.Por um instante, parecia que o fogo e a água conversavam — não como opostos, mas como irmãos.

E naquele instante de quietude, Lucius percebeu que havia aprendido mais do que uma lei elemental.Aprendera a ouvir.E isso, talvez, fosse o primeiro passo para compreender o todo.

...

A névoa dançava sobre a superfície do rio, envolvendo tudo em um brilho prateado. O som da cachoeira ecoava nas rochas, profundo e ritmado como o coração do mundo.

Lucius estava sentado à beira d'água, com os olhos fechados. O ar à sua volta parecia pulsar com vida própria — partículas de mana se moviam, sutis, acompanhando o fluxo da correnteza.

Friaren observava em silêncio. Desde que o conhecera, ele sempre foi assim: calmo demais, paciente demais, e de algum modo, intocável. No começo, achava aquilo irritante. Hoje… achava intrigante.

Ela se aproximou, as botas afundando levemente no solo úmido."Você fica tão imóvel que parece parte da paisagem," disse, com um sorriso leve.

Lucius abriu um olho. "E você, tão impaciente que parece o vento tentando empurrar a montanha."

"Ei," ela retrucou, "se o vento insistir o bastante, até a montanha cede."

Ignis soltou um trinado breve, como se achasse graça. Suas pequenas chamas refletiam nas gotas suspensas no ar, tingindo-as de dourado.

Lucius voltou o olhar para a água."Vê essas ondas? Cada uma delas nasce, morre e se renova sem cessar. A essência da água é esse ciclo — fluir, ceder e renascer. É por isso que ela é invencível, mesmo sem atacar."

Friaren ficou quieta. Aquelas palavras, simples, tocavam fundo — como se uma lembrança antiga tivesse acordado. Ela ergueu uma das mãos e deixou a mana correr por entre os dedos. O ar ao redor reagiu, e pequenas gotas flutuaram, girando em espiral.

Foi então que sentiu.Não era apenas mana — era vida, em seu estado mais puro. O vento se acalmou, o trovão dentro dela se suavizou, e a água… parecia acolhê-los a todos.

Lucius a observou, silencioso.O poder dela se expandia, refinando-se, como se algo dentro de Friaren finalmente se alinhasse com o mundo. Sua alma pulsava com uma luz serena — o avanço era claro.

Ela respirou fundo, abrindo os olhos. "É… diferente. É como se o corpo todo respirasse junto com o mundo."

"Você ouviu," disse Lucius.

"Ouvi o quê?"

"A resposta que a água dá pra quem para pra escutar."

Friaren riu, balançando a cabeça. "Você e seus enigmas… Um dia vou entender todos eles."

Ignis ergueu as asas, espalhando faíscas sobre o rio. "Talvez ele só fale difícil pra parecer sábio," disse, em tom brincalhão, com sua voz juvenil ecoando na mente deles.

Lucius suspirou. "Nem a fênix acredita em mim."

Friaren sorriu. "Bem-vindo ao clube."

E por um instante, entre o riso suave e o murmúrio da água, o mundo pareceu em perfeita harmonia — três seres diferentes, ligados por uma mesma trilha invisível.

A alma de Friaren havia evoluído. Agora, o brilho que emanava dela era o de uma maga santa em ascensão, tocando o limiar do poder intermediário.

Mas para Lucius, o verdadeiro avanço estava ali — no sorriso dela.Não frio. Não distante.Humano.

...

A jornada seguiu entre penhascos e vales cobertos por neblina.O vento frio da Cordilheira das Bestas Mágicas carregava o cheiro de terra úmida, musgo e vida selvagem.O trio avançava em silêncio — Lucius na frente, atento a cada vibração do ambiente; Friaren logo atrás, flutuando levemente, seu manto azul prateado ondulando; e Ignis, em forma reduzida, pousada em seu ombro, as asas ardendo em um brilho discreto.

O sol já se inclinava quando o som de aço cortando o ar rompeu o silêncio.

"Ouviu isso?" — Friaren pousou suavemente no chão, os olhos dourados atentos.Lucius apenas assentiu. "Lá adiante… há luta."

Atravessaram uma pequena encosta, e logo a visão se abriu para um descampado entre rochedos.Cinco jovens guerreiros — maltrapilhos, mas determinados — lutavam contra um grupo de figuras vestidas em cinza escuro e máscaras negras. Os símbolos em seus ombros eram familiares: uma serpente em espiral mordendo a própria cauda.

"Caçadores de Sombras," murmurou Friaren. "Mercenários. Vivem de emboscar viajantes e vender os corpos às guildas negras."

Lucius observou em silêncio.Os jovens resistiam com coragem, mas estavam cercados.As lâminas dos bandidos eram rápidas, precisas — movimentos de quem matava por hábito, não por necessidade.

"Poderíamos ajudar," disse Friaren, a voz baixa.

"Poderíamos," respondeu Lucius, o olhar fixo no campo de batalha. "Mas primeiro… quero ver o que são capazes de fazer."

Ignis inclinou a cabeça, curiosa. "Você é estranho. Tem olhos que veem tudo, mas às vezes parece… distante."

Lucius sorriu de leve. "Observar é aprender. E aprender é o primeiro passo para mudar o destino."

Um dos jovens gritou quando a lâmina inimiga rasgou-lhe o ombro. O sangue caiu na terra e o cheiro metálico se espalhou. Friaren deu um passo à frente, pronta para agir — mas Lucius ergueu a mão.

"Espere."

Os olhos dele brilharam por um instante — uma sombra de poder que distorceu o ar.Os ventos cessaram. As folhas pararam de cair.E então, no instante seguinte, o caos explodiu.

Não foi possível distinguir o que aconteceu — um sopro de mana percorreu o campo, e os mascarados cambalearam, confusos, as lâminas caindo das mãos.Lucius avançou calmamente, o olhar sereno, como se a própria noite o seguisse.

Quando o silêncio enfim reinou, os guerreiros, atônitos, encararam o homem de manto escuro e olhos dourados.

Friaren pousou ao lado dele, a aura leve e reluzente.Ignis bateu as asas, faiscando, e o ar se encheu de chamas douradas que ardiam sem queimar.

Nenhum dos jovens disse uma palavra.Apenas olharam — entre o medo e a gratidão, sem saber quem eram aquelas figuras que surgiam como deuses entre as sombras.

Lucius quebrou o silêncio."Cuidem-se. A cordilheira não tem piedade dos ingênuos."

Os jovens assentiram, ainda trêmulos.Enquanto se afastavam, Friaren olhou para Lucius."Você os salvou sem sequer lutar."

"Às vezes, lutar é apenas uma forma de perder tempo," respondeu ele, olhando o horizonte. "E há algo muito mais perigoso nesta floresta do que simples ladrões."

Ignis, empoleirada em seu ombro, fitou o céu que escurecia."Então vamos descobrir o que é."

Lucius sorriu."Sim. As sombras da cordilheira ainda têm muito a nos ensinar."

E assim, sob o pôr do sol avermelhado, seguiram adiante — o mago que dominava os elementos, a maga que dançava com o relâmpago, o lobo que adormecia nas sombras e a fênix que carregava o brilho da eternidade.

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