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Chapter 22 - Capítulo 21 — O Coração Ardente nas Profundezas

O vento da Cordilheira das Bestas Mágicas era diferente de qualquer outro.Ele não apenas soprava — murmurava.Trazia o cheiro de ferro, terra e relâmpago; um hálito vivo que parecia sair das montanhas como se o próprio mundo respirasse.

Lucius caminhava à frente, seu manto escuro oscilando com o ritmo lento de seus passos. Cada rocha, cada fissura no solo, era marcada por antigos sinais de batalha.À distância, nuvens espessas se acumulavam, e relâmpagos dançavam silenciosamente entre os picos — um espetáculo natural que lembrava que ali, a força governava tudo.

Ao lado dele, Friaren Caelum caminhava tranquila, mas atenta. Sua expressão, que outrora fora fria e contida, agora trazia um leve brilho de serenidade.Desde o dia em que se conheceram, a garota de cabelos prateados havia mudado.Antes era o vento — livre, mas distante.Agora, era a brisa após a tempestade: calma, constante e cheia de propósito.

A poucos passos atrás, Aurus, em sua forma reduzida, caminhava com o focinho erguido, farejando o ar denso da montanha."Há cheiro de sangue antigo por aqui..." — murmurou, sua voz grave ecoando em um tom baixo, quase respeitoso.Lucius assentiu. "As montanhas guardam memórias. E nem todas dormem em paz."

O trio seguia em silêncio.O som de seus passos misturava-se ao murmúrio distante da selva abaixo — rugidos, grasnados, o estalar de árvores.Mas ali, nas encostas mais altas, o mundo parecia suspenso entre dois silêncios: o da vida que teme e o da morte que observa.

Friaren parou um instante e olhou o horizonte."O céu aqui parece mais pesado..."Lucius ergueu o olhar, acompanhando-a. "É a pressão natural do mana. Essas montanhas respiram magia. Até o ar tenta te testar."Ela riu de leve. "Então é o lugar perfeito pra nós."

O caminho se tornou estreito, serpenteando entre paredões rochosos cobertos por musgo e cristais de mana. À medida que avançavam, o brilho da luz natural desaparecia — substituído por uma fosforescência azulada que emanava das fendas no chão.

"Vamos mais fundo", disse Lucius, sua voz calma, porém firme.Friaren hesitou por um instante, observando as sombras que pareciam se mover sozinhas nas paredes."Tem certeza? Lugares assim... não gostam de ser perturbados."Lucius lançou-lhe um olhar breve e sereno. "É justamente por isso que devemos entrar. O desconhecido não é nosso inimigo — é nosso espelho."

Aurus soltou um breve rosnado de satisfação. "Hah! Finalmente algo interessante."E, sem esperar resposta, o lobo seguiu adiante, suas garras ecoando como tambores antigos.

Friaren suspirou e sorriu. "Vocês dois nasceram pra me dar trabalho, não é?"Lucius apenas respondeu com um olhar tranquilo."Talvez… mas é um bom tipo de trabalho."

Assim, o trio desceu.A luz rareava, o ar tornava-se espesso, e cada passo soava mais pesado.Logo, a trilha natural se abriu em um corredor rochoso — uma fenda estreita de onde soprava um vento quente e profundo.

Lucius ergueu a mão, sentindo o ar vibrar contra a pele."Há vida lá embaixo. Forte… antiga."Friaren cruzou os braços, um pequeno sorriso formando-se em seus lábios."Então acho que achamos o caminho certo."

E, sem mais palavras, eles avançaram — engolidos pela escuridão viva da montanha.

...

O corredor subterrâneo se alargava, como se a montanha tivesse sido escavada pelas próprias mãos do tempo.O ar agora era denso, quente — e pulsava.Havia ali uma energia viva, bruta, ancestral.O tipo de força que não aceitava ser compreendida, apenas respeitada.

A luz azulada das pedras de mana refletia nas paredes úmidas, desenhando sombras móveis que dançavam com o vapor que subia do chão.A cada passo, o som das botas de Lucius ecoava como batidas de tambor em uma câmara de um deus adormecido.

"Está sentindo?" — murmurou Friaren, seus olhos estreitando-se, atentos.Lucius assentiu. "Duas presenças. Gigantescas… e furiosas."

Aurus ergueu o focinho, farejando o ar saturado de mana. Seus olhos brilharam em um tom profundo de âmbar."Bestas sagradas. Não muito longe. E estão… em guerra."

Seguiram o som.Um rugido trovejante fez o chão estremecer, seguido por um sibilar longo, serpentino.Quando a trilha de pedra se abriu, o trio parou diante de uma caverna colossal, um espaço aberto dentro da montanha — iluminado por cristais naturais que lançavam luzes avermelhadas e douradas sobre o solo rachado.

Ali, dois gigantes travavam uma batalha.

De um lado, uma serpente colossal, escamas negras com tons azulados, seus olhos como fendas de um abismo — o ar ao redor dela tremia, e cada movimento deixava rastros de energia sombria.Do outro, uma raposa de nove caudas, cada uma ardendo em fogo prateado e dourado, como se o próprio sol tivesse se dividido em fragmentos para lhe dar vida.

As duas criaturas se chocavam, e o mundo estremecia.Raios de energia explodiam entre os golpes; fogo e sombra dançavam num caos de beleza e destruição.Era um espetáculo divino — e terrível.

Lucius observava em silêncio.Seus olhos, normalmente calmos, refletiam o brilho das chamas da raposa e a escuridão que se derramava da serpente."É uma disputa de domínio…", murmurou ele. "Nenhuma delas está caçando. Estão… defendendo algo."

Friaren, de braços cruzados, assentiu, analisando com frieza."Então há um motivo para tanto poder reunido num só ponto. Provavelmente algo de valor. E elas estão decidindo quem merece."

Aurus grunhiu, o som grave ecoando pela caverna. "Tolos. Mesmo entre bestas sagradas, a ganância ainda é o que move o sangue."Lucius olhou de lado para ele, meio sorrindo. "E você faria diferente, Aurus?"O lobo mostrou os dentes num sorriso enviesado. "Depende do que está sendo protegido."

Um estrondo sacudiu o ar — a serpente desferiu um golpe final, lançando uma onda de energia escura que rasgou o chão.A raposa, coberta de chamas divinas, desviou parcialmente, mas seu corpo foi atingido.O som de carne queimando e o rugido de dor preencheram o espaço.Com um último salto, a raposa ergueu-se — e desceu sobre a serpente, cravando as presas luminosas no pescoço da rival.

Silêncio.

Um instante depois, a serpente colapsou, afundando metade do corpo na rocha partida.A raposa manteve-se de pé, as nove caudas tremendo no ar…E então, lentamente, tombou também, exaurida.As chamas de seu corpo se apagaram, restando apenas um brilho tênue sob sua pele.

Friaren respirou fundo. "As duas morreram."Lucius não respondeu.Ele apenas caminhou adiante, seus olhos fixos no centro da caverna — um ponto onde o chão brilhava com uma luz avermelhada e pulsante.

Ali, entre os corpos caídos, um ovo repousava.Gigante.Vermelho como sangue coagulado, coberto por veios dourados que formavam símbolos antigos — como se o próprio mundo tivesse o selado com runas.Cada pulsação emitia um som suave, quase um batimento… mas fraco, como o coração de alguém à beira do fim.

Lucius se aproximou lentamente, ajoelhando-se diante dele."Então era isso…" — murmurou. "O motivo de tanta fúria."

Friaren ficou a seu lado, observando o ovo."Está morrendo. Seja o que for, não vai durar muito mais."Lucius pousou a palma da mão sobre a superfície quente e rachada.Por um breve instante, sentiu algo… familiar.Um chamado fraco, como uma voz antiga sussurrando de dentro da casca.

"Não." — ele disse, em tom baixo. "Ainda há vida aqui."

Aurus se aproximou, curioso. "Vai mesmo tentar?"Lucius fechou os olhos. "Algumas apostas valem a pena."

E enquanto o eco das palavras desaparecia nas profundezas, uma onda sutil de energia começou a se mover ao redor dele — as almas das duas bestas sagradas, ainda pulsando no espaço, foram atraídas como correntes invisíveis.

Lucius ergueu a mão e as guiou, lentamente, até o ovo.

As luzes douradas e negras se fundiram — e foram devoradas.O ovo começou a brilhar, o som do batimento tornou-se intenso, vivo, e o ar ao redor vibrou com um poder que fez até Friaren recuar um passo.

"Lucius…" — ela murmurou, surpresa. "Isso é…"Mas ele não respondeu.Apenas observava, em silêncio, enquanto a vida renascia diante dele.

...

O som dos batimentos aumentava, reverberando como um tambor divino nas entranhas da montanha.Friaren recuou um passo, instintivamente. O ar estava quente, denso demais — vibrava com uma energia que distorcia o espaço.Até Aurus, acostumado com forças brutais da natureza, sentiu o instinto primitivo de se afastar.

Lucius, porém, permaneceu imóvel diante do ovo.O calor que emanava dele não o queimava — ao contrário, o envolvia como uma lembrança antiga, algo que falava diretamente à sua alma.

As rachaduras começaram a surgir.Primeiro, finas linhas de luz dourada percorreram a casca, como relâmpagos presos em vidro.Depois, um som suave — crack — e outro, e outro… até que o ovo inteiro pulsou, iluminando toda a caverna num vermelho vivo, ardente e sagrado.

De dentro, uma força irrompeu —Um clarão incandescente preencheu o ar, e o chão vibrou sob os pés do trio.A energia liberada não era destrutiva, mas… pura.Era como a própria essência da vida tentando reescrever a morte.

Quando a luz enfim se dissipou, ali estava ela.Uma ave magnífica, envolta em chamas suaves que não queimavam, apenas dançavam como véus de luz.Suas penas reluziam em tons de ouro, escarlate e âmbar; o olhar era profundo, cheio de calma e inteligência.

Friaren mal respirava."...Uma Fênix," murmurou, quase sem voz. "Mas… isso é impossível. A linhagem das Fênix foi extinta desde a Era Primordial…"

Lucius não respondeu.Os olhos da criatura haviam se fixado nos dele — e naquele instante, algo atravessou o espaço entre ambos.

Um elo.Não de dominação, nem de controle.Mas de reconhecimento.

A Fênix inclinou a cabeça, aproximando-se.As pequenas chamas que escapavam de seu corpo envolveram Lucius num manto suave de calor, sem o ferir.Ela tocou o peito dele com o bico, e um brilho dourado se espalhou de ambos — pulsando em sincronia.

Lucius fechou os olhos.Ele sentiu a alma da criatura, sua essência.Ela havia morrido e renascido incontáveis vezes.E agora, pela primeira vez em eras, escolhia alguém.

Aurus observava em silêncio, seus olhos ambarinos refletindo as chamas. "Um elo de alma… ela o escolheu como mestre."Friaren manteve-se calada por um instante, antes de sorrir de leve. "Ou talvez… como igual."

Quando o brilho cessou, a Fênix soltou um suave canto — uma melodia etérea que ecoou pela caverna, subindo pelas fendas até alcançar o mundo acima.O som era ao mesmo tempo triste e belo, como se lamentasse todas as eras que se perderam e celebrasse o novo início que nascia ali.

Lucius abriu os olhos e falou baixo:"Você… não precisa de um nome antigo. O passado acabou. A partir de agora, será Ignis."A ave soltou um chilrear baixo, como se aceitasse.Uma pequena chama surgiu sobre o ombro de Lucius, tomando a forma de uma miniatura da Fênix, que o observava com olhos dourados.

Friaren cruzou os braços, um sorriso discreto nos lábios."Você sempre atrai o improvável, Lucius. A cada passo, o impossível se curva."Ele deu um meio sorriso. "Talvez eu só tenha sorte."

Aurus soltou um ronco divertido. "Sorte? Você acabou de reviver uma fênix lendária. Se isso é sorte, quero um pouco pra mim."

O trio permaneceu em silêncio por um tempo.O calor agora era agradável, o ar limpo, e uma luz suave se derramava das chamas flutuantes que a Fênix deixava no ar — como pequenos sóis dormindo no escuro.

Lucius olhou em volta. "Este lugar… foi testemunha de um renascimento. Não devemos profaná-lo mais."Friaren assentiu, e juntos começaram a se retirar.Enquanto subiam de volta pela caverna, o cântico distante da Fênix ecoava atrás deles — um hino antigo que falava de vida, morte e eternidade.

E pela primeira vez em muito tempo, Lucius sentiu algo que há muito havia esquecido:calor verdadeiro.

..

A claridade da saída da caverna se misturava com o brilho das chamas suaves que seguiam o trio.O ar da montanha era frio e puro, um contraste marcante com o calor do interior.Lucius caminhava na frente, o passo firme, enquanto Friaren vinha logo atrás, observando em silêncio a pequena ave que agora os acompanhava.

Ignis — a Fênix — batia as asas delicadamente, deixando um rastro de faíscas douradas no ar.De tempos em tempos, pousava sobre o ombro de Lucius, o encarando com olhos curiosos e vivos.A luz do entardecer se refletia em suas penas como ouro líquido.

"Ela é… diferente do que imaginei," disse Friaren, quebrando o silêncio. "Pensava que uma fênix seria maior, mais majestosa."

Lucius sorriu levemente."Ela ainda é jovem. Uma criança recém-nascida no ciclo da vida eterna. Mesmo assim, sua essência é pura… uma verdadeira Fênix Original."

Friaren arqueou a sobrancelha. "Original?"

Lucius olhou para o horizonte, a expressão calma, mas carregada de conhecimento."A Fênix Original é uma das linhagens primordiais — criaturas formadas no início do mundo, quando os elementos ainda estavam vivos e conscientes. Quase todas foram extintas há eras. O que restou foram descendentes híbridas, as chamadas Fênix Vulcânicas, nascidas dos fluxos de magma. Belas, poderosas, mas... imperfeitas."

Friaren fitou Ignis com atenção renovada. "Então ela é uma dessas raridades que o tempo esqueceu."

"Mais do que isso," respondeu Lucius. "Ela é um eco do passado, uma lembrança de quando os seres do fogo ainda eram parte da própria criação."

Nesse momento, a pequena ave abriu as asas e pousou diante deles no chão.O brilho ao seu redor intensificou-se, e de repente, uma voz suave e feminina ecoou — clara e inocente como o canto de uma criança.

"Vocês... me ouviram..."

Friaren arregalou os olhos. "Ela... falou?"

Lucius apenas sorriu, como se já esperasse por isso.Ignis olhou para ele, as chamas em suas penas tremulando em tons de vermelho e dourado."Sua alma, Lucius... ela era tão pura... tão antiga. Quando a ofereceu a mim, algo dentro de mim despertou. Fragmentos… de quem eu fui."

Sua voz carregava uma doçura melancólica."Mas há tanto vazio… memórias quebradas… nomes apagados. Eu não lembro quem eu era antes do fogo me apagar."

Lucius ajoelhou-se diante dela, estendendo a mão com gentileza."Não precisa lembrar," disse ele calmamente. "Você renasceu. O que era já não importa. O que será… é o que importa agora."

A pequena Fênix piscou, suas chamas vacilaram — e então ela sorriu."Então... serei Ignis. E caminharei com vocês."

Friaren suspirou com um meio sorriso. "Ótimo, mais uma criança para cuidar."Ignis inflou o peito em protesto, soltando uma fagulha que quase atingiu o cabelo da maga. "Eu não sou uma criança!"

Lucius conteve o riso. "Cuidado, Friaren. Ela ainda está descobrindo o que é orgulho."

"Ah, claro," respondeu a maga, cruzando os braços com fingida seriedade. "Uma criança divina de fogo, com orgulho de um dragão e voz de passarinho."

Ignis bufou, as chamas tremulando como se fizessem bico.Aurus, que observava a cena com sua forma lupina reduzida, soltou um ronco baixo e divertido. "Vocês três… são o grupo mais estranho que já caminhei junto."

A trilha à frente se abria em direção à floresta viva — um mar de verde profundo, iluminado por raios de sol que desciam entre as copas como lanças douradas.Pássaros exóticos cortavam o ar, e no horizonte, montes envoltos em névoa formavam o limite da Cordilheira das Bestas Mágicas.

Lucius levantou-se e olhou para o céu."O mundo é vasto," murmurou. "Cada passo é um novo início. Que esta jornada nos mostre o que ainda não sabemos — e o que esquecemos de lembrar."

Friaren, com um leve sorriso, respondeu:"Então continuemos. A estrada ainda é longa… e o destino, imprevisível."

E assim, sob o canto suave de Ignis e o rugido distante de criaturas selvagens, o trio avançou.O vento dançava entre as árvores, e o sol, descendo sobre as montanhas, parecia celebrar em silêncio aquele raro e improvável encontro:um homem, uma maga, um lobo — e uma fênix renascida do esquecimento.

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