Tíwaz organizava os pensares na madrugada, não precisava mais da luz elétrica, enxergava perfeitamente no escuro.
A neve caía suave.
O menino respirou fundo, certa alegria tomou-o.
Voltou a planejar o dia tranquilamente sem imaginar o que o esperava.
Permanecia tão focado, olhando o teto, que não reparou na presença de Forster.
Dias antes, ele a enviara para viver com Yorranna, mas ainda recebia ligações da serva, pedindo para voltar, reclamando que a nova senhora era uma parva, entre outras descrições grosseiras.
Tíwaz insistia para que a nobre fosse educada nos afazeres do lar, dando liberdade para Forster ser enérgica se necessário.
E agora ela estava ali, diante dele, antes da estrela Fênix nascer.
Ele imaginou que Forster desistira da nobre mimada.
— Não gostaria de alguns serviços especiais, meu senhor?
O decote tornava-a atraente, e Tíwaz controlava-se, ouvindo o sangue por baixo da pele suculenta.
— Olha como se a quisesse devorar. Afasta-se de minha serva, permanecerá incólume. Que está fazendo, Tíwaz? — atrás de Forster surgiu a imagem da irritada Yorranna.
— Nada… — ele não compreendia a situação, até que viu outro rosto, então desconhecido, homem grande e escorrendo suor, e depois outros dois homens pesados e barbudos, e o guarda-roupa sendo levado escada acima.
— Parece mais com residência plebeia, a casa de nossos empregados em Foz da Queda era maior que isso. Não pode pagar por outro lugar? — a voz de Bollomixiana, apontando onde o carregador, enorme e mal-encarado, deixaria a penteadeira, foi o limite:
— O que vocês estão fazendo aqui?
— É situação complicada. — Bollomixiana subiu as escadarias, e deixou-o sem respostas no andar de baixo.
— Eu posso entender. — ratificou Tíwaz, e foi até Yorranna. — Explica de uma vez.
— Minha irmã venceu alguém no Ultimato, na segunda luta dela. E fez mais inimigos. Como se não tivéssemos inimigos o bastante.
— E?
— Acabou sendo despejada dos aposentos dela. Como sempre, sobrou para mim também. A Árvore confiscou meu chalé.
— E?
— Não tínhamos onde ficar. Então, sugeri passarmos uns dias contigo, até nos estabilizarmos.
— Sábia escolha, senhora. — endossou Forster, analisando os corredores limpos e os móveis sem poeira.
Estacionava nova carruagem, barulhenta e expelindo vapores por todo o jardim de losnas, puxava duas carroças abarrotadas com ainda mais móveis.
— Espera, não vai caber tudo isso aqui dentro!
— Leiloe algumas dessas velharias. — Bollomixiana descia apressada, e apontava ao divã e ao longo canapé. — São de péssimo gosto, quem escolheu essa mobília?
— Não, espera, meu divã não, eu gosto de meditar nele! — Tíwaz segurou o móvel, ainda com as cobertas bagunçadas.
E os sinos foram ouvidos.
Existiam torres de sino enterradas em todas as províncias. Soavam duas vezes, a primeira avisando do brumal alvorecer, e a segunda certificando a segurança para sair durante a noite.
Ficavam tão profundamente distantes da superfície, que os humanos não conseguiam as escutar. Eram avisos exclusivos aos vampiros.
Boa parte dos móveis foi levada ao leiloeiro, para os cuidados de Alfren'ér, que despertou desgostoso ao ser procurado, mas que, fartou-se compreendendo a situação de ledo, garantindo vender tudo ainda na mesma estação, o que renderia recursos às irmãs.
Depois foi a vez de dividirem os quartos, existiam três ao todo, e quem perdeu foi o garoto, ficou um para cada irmã, e como a propriedade não possuía ala de empregados, Forster também ganhou o dela:
— É meu primeiro quarto só para mim, em casa eu dividia com minhas irmãs, que pesadelo. — satisfeita, entrou e trancou a porta, informando com a voz abafada. — Meu turno começa na décima hora do dia.
O guarda-roupa de Tíwaz ficara no corredor, e muitas das vestimentas dele, que pertenciam originalmente ao proprietário anterior do chalé, também foram levadas para o leilão, a mando de Bollomixiana, que as odiou, considerando-as antiquadas.
Assim, Tíwaz ganhou o direito de ter a sala da lareira como quarto, tendo ali móveis que não couberam no andar superior, o dossel de nogueira acima do divã, pelo qual teve de lutar, a arca de armas, com espadas, incluindo as lâminas das irmãs, a Leão do Entardecer, e a Asa do Oriente, o florete de lâmina de jade que pertencia a Yorranna, e era usado desde o fincar da última arma no teto do salão de treinamento.
Como paredes, os biombos com pinturas e entalhes florais davam certa privacidade para a sala principal, onde o piano de cauda e a cristaleira se recostavam diante da janela.
Impregnava-se em Tíwaz, sensível desde o início das alterações corporais, o aroma da madeira velha e molhada pela neve.
Na cozinha duas mesas, a antiga, que originalmente pertencia ao chalé:
— Foi entalhada a mão, não pode vender isso, é arte! — fundamentou Bollomixiana.
— Vamos ficar com as duas mesas na cozinha? Mande essa outra ao leilão, então. — a outra mesa, de vidro galvanizado, tinha que ser empurrada para fechar a porta de acesso ao corredor.
— Não posso, foi presente de mamãe. — Bollomixiana não renunciou ao regalo, e ficaram com os móveis contrastantes.
Nos corredores do primeiro andar, as estantes com instrumentos musicais, e no corredor dos quartos, no segundo andar, os móveis com livros e partituras.
Nos quartos, incluindo o de Forster, muitas mobílias, todas com vestidos e sapatos, maquiagens, e peças íntimas.
Para o plebeu, que só as via de uniforme militar, como ordenavam as regras da Árvore, a questão ficou no ar, onde usariam as pilhas de vestimentas aglomeradas?
Durante todo o dia da mudança, os outros alunos comentavam sobre os três vivendo juntos. E o burburinho acompanhava os passos indo aos treinamentos.
Atrasou-se Bollomixiana ao voltar, o que preocupou os demais. Estava com a cabeça nos problemas, e, sem pensar, seguiu à Torre de Esmeralda, fingindo que era esse mesmo o objetivo de seus passos, até retornar ao Distrito de Carvalho.
Durante a noite, as meninas ficaram no quarto por menos de uma hora, e, uma a uma, foram atraídas ao primeiro andar.
Aconchegaram-se, Forster e Bollomixiana, no chão tomado de tapetes e cobertas de pelo de lobo, leão, e urso, com Tíwaz tentando as ignorar, apesar dos perfumes.
— Sinto muito por isso, não vai durar muito tempo. — conclamou Bollomixiana ao perceber que Forster dormia, com Yorranna estudando inquieta na biblioteca, que então dividia espaço com cabideiros repletos de vestidos, protegidos por capas de seda.
Bollomixiana não sentia frio havia alguns anos, e Tíwaz também começava a perder essa capacidade, no entretanto, ambos tinham recaídas, febris como qualquer humano comum.
— Pode ficar todo o tempo que quiser, mas…
— Mas?
— Quero saber de que se trata, e entender a situação. Se minhas amigas têm inimigos, também tenho esses êmulos. E me interesso por seus gostos e desgostos. Sua irmã é fácil de lidar, afeta-a qualquer coisa com sabor adocicado, e simplifica meus dias.
Tíwaz, ainda deitado no divã, visou a poltrona onde Bollomixiana recostava-se, e os olhos dela brilharam avermelhados:
— Não preciso de sua simpatia, ou do que se vê compelido a ofertar por deduzir reter obrigação que não resguarda. Não me deve nada, eu é que estou em débito. Essa guerra não é sua.
— Não era minha guerra até hoje de manhã. Fala, que se vierem atrás de ti também preciso me proteger, afinal, estou na tua frente. Não é educação, não a possuo, é minha sobrevivência em risco.
E abriu-se Bollomixiana sem sofismas.
