O amanhecer despontava em tons de prata sobre as planícies de Valen.A estrada que ligava a cidade às colinas do leste estava úmida de orvalho, e o vento frio trazia o cheiro da terra molhada.Duas carroças cobertas seguiam lentamente, escoltadas por supostos mercadores — mas o olhar atento de qualquer guerreiro notaria a tensão nos gestos.
No alto de uma encosta, Kael observava em silêncio.Seu corpo estava imóvel, os músculos prontos, os olhos como lâminas de sombra.Ao lado dele, uma pequena pedra gravada com um selo de luz pulsava — uma magia simples, usada para emitir sinais visuais à distância."Posições prontas," murmurou ele para si, e acendeu a pedra.O brilho dourado piscou uma vez, o suficiente para ser visto por quem esperava mais adiante.
Entre as árvores, Friaren ajeitava o manto.Ao seu lado, Aurus, o lobo prateado, mantinha-se abaixado, o corpo tenso e os olhos dourados fixos na estrada.Sua presença era como a de uma fera antiga — uma mistura de majestade e ameaça."Espere o sinal do Lucius," disse Friaren calmamente, com um sorriso pequeno. "E, por favor, sem exageros desta vez."Aurus soltou um baixo rosnado em resposta, o ar saindo como fumaça no frio da manhã.
Mais adiante, sobre uma pedra no alto do vale, Lucius observava o cenário com o olhar calmo de quem já conhecia o desfecho.Ele havia previsto a emboscada.O Barão Valcrest não era homem que aceitasse humilhações calado — e bandidos desesperados eram ferramentas baratas.
"Eles acham que controlam o jogo," murmurou Lucius, os olhos dourados cintilando. "Mas jogam sobre o tabuleiro que eu mesmo desenhei."
Ele ergueu a mão.A pedra de sinal bruxuleou novamente, e Kael moveu-se.
Das colinas e da mata, os Espadas Negras surgiram como sombras — trapos, lâminas e gritos roucos.Desceram sobre as carroças fingindo ser viajantes comuns.Mas, antes que chegassem a dez passos de distância, o chão sob seus pés brilhou com runas douradas.
Um clarão explodiu.A onda de choque lançou os primeiros atacantes pelos ares.
Kael saltou do alto da colina, o douqi sombrio envolvendo o corpo.Em um instante, cruzou o campo e atingiu o primeiro inimigo com um golpe seco — a lâmina de sua espada curta dividindo o ar com precisão letal.Ao mesmo tempo, Lyara desceu pela lateral, empunhando a lança longa amazona.Seu douqi carmesim ondulava como fogo, cada golpe um turbilhão de força.Ela girou o cabo e arremessou um dos inimigos contra outro, o impacto ecoando como trovão.
Do outro lado, Aurus avançou.Um rugido grave percorreu o vale.Ele saltou, as garras brilhando com energia espiritual — e esmagou dois homens no chão com um só golpe.O lobo era mais que uma fera; era uma manifestação viva do instinto e da lealdade.Ao rugir, fragmentos de poder mágico escaparam de seu corpo, ondulando o ar.
Friaren ergueu o cajado e murmurou palavras antigas.Círculos de vento surgiram, prendendo os inimigos e desarmando-os."Fiquem quietos," disse ela suavemente. "Já perderam."E o vento obedeceu, silenciando gritos e poeira.
Em poucos minutos, o campo de batalha ficou em silêncio.Os Espadas Negras jaziam derrotados — alguns inconscientes, outros incapazes de lutar.
Lucius desceu calmamente até a estrada, o manto ondulando com o vento.Um dos bandidos ainda respirava.Lucius se ajoelhou ao seu lado."Diga ao seu mestre," falou com voz serena, "que a sombra não pode reclamar o que já pertence à luz."
O homem tentou responder, mas caiu inconsciente.
Kael aproximou-se, limpando a espada."Nenhum deles vai voltar a incomodar Valen."Lucius assentiu. "Nem deveriam. O medo fará o resto do trabalho."
Lyara se aproximou, o olhar ainda em alerta."Devemos perseguir o resto?""Não," disse Lucius, olhando para o horizonte. "Eles correrão direto para quem os mandou. E quando o barão pensar que nos enganou, será o momento de puxar a corda."
Aurus aproximou-se, a pelagem manchada de poeira e sangue seco.Lucius pousou a mão em sua cabeça."Bom trabalho, parceiro. Você luta como se lembrasse de algo mais antigo que este mundo."O lobo rosnou baixinho, e Friaren sorriu."Ele entende mais do que parece."
Lucius se virou para o grupo, o olhar calmo mas firme."Recolham o que sobrou. Vamos voltar antes do pôr do sol. Valen precisa saber que a Caelum não teme sombras."
Enquanto subiam de volta à estrada, o vento carregou o cheiro metálico da batalha.E entre as colinas, o eco do rugido de Aurus ficou para trás —um aviso para todos que ousassem desafiar a nova força que crescia em Valen.
...
O salão do Solar Valcrest estava mergulhado em meia-luz.As cortinas pesadas mantinham o sol afastado, e o ar carregava o cheiro amargo de vinho e ferro.No centro, uma grande mesa coberta de mapas e pergaminhos mostrava as rotas comerciais de Valen e das aldeias vizinhas — e sobre elas, pequenas peças de metal representavam forças e caravanas.Quase todas estavam viradas.
O barão permanecia sentado à cabeceira, os dedos tamborilando devagar no braço da cadeira.Seu olhar era um abismo de tédio e raiva contida.
A porta se abriu com um rangido, e um soldado entrou às pressas."Meu senhor… o homem que enviamos… ele retornou.""Retornou?"O tom frio do barão fez o soldado engolir seco. "Sim, senhor. Mas... está ferido. Gravemente."
Dois guardas trouxeram o mensageiro — um homem magro, o rosto coberto de sangue seco, o corpo tremendo.Foi largado aos pés do barão como um animal moribundo.
"Fale," ordenou Valcrest.
O homem tentou erguer a cabeça. "E-eu vi... o garoto... ele nos esperava. Eles sabiam, senhor. As colinas... as colinas explodiram em luz."Tossiu, cuspindo sangue. "A mulher guerreira... a amazona... e aquele lobo... aquele monstro... não era natural."
O barão não respondeu.Apenas pegou sua taça e girou o vinho, observando o reflexo escarlate no vidro."Quantos voltaram?""N-ninguém, senhor. Só eu.""Hum."O som seco da taça pousando na mesa quebrou o silêncio."Então… uma criança me humilha duas vezes."
Os conselheiros e capitães na sala se entreolharam.Um deles, um homem grisalho de armadura escura, deu um passo à frente."Senhor, com a devida permissão… não se trata mais de uma criança. Esse Lucius Caelum está reunindo força real. Talvez devêssemos solicitar ajuda da capital, ou de outro ducado—"
"Silêncio."A palavra foi dita calmamente, mas o peso dela fez o homem engasgar.
Valcrest se levantou devagar."Pedi conselhos, não covardia."Deu a volta na mesa, aproximando-se do mensageiro caído.Ajoelhou-se, estudando o rosto do homem com um leve sorriso."Você viu o garoto de perto?""S-sim, senhor...""O que havia nos olhos dele?"O homem tremeu. "Luz... mas fria... como se... como se nos visse de cima...""Interessante."O barão se levantou, pegou sua espada decorativa e cravou-a no chão ao lado do homem."Então, quando eu olhar nos olhos dele, quero que veja medo. Entendido?"
O homem não respondeu.Estava imóvel.
Valcrest limpou a lâmina num pano e voltou à mesa."Preparem mensageiros. Quero contato com os Irmãos de Ébano — digam que tenho trabalho para homens dispostos a tudo."Um dos capitães hesitou. "Senhor… eles são assassinos. Fora da lei.""Perfeito," disse o barão, servindo-se de mais vinho. "Então falarão a língua que Lucius entende."
Enquanto os oficiais se retiravam, ele permaneceu sozinho no salão.A luz da lareira iluminava o brasão de sua casa — serpentes em espiral sobre uma torre prateada.O barão ergueu o olhar para o brasão e murmurou:"Você quer brincar de líder, garoto?Então queime como um adulto."
Do lado de fora, o vento soprou pelas varandas do solar.Um corvo pousou no parapeito, crocitando uma única vez antes de voar em direção ao sul — para onde ficava Valen.
E no olhar do barão, pela primeira vez, havia algo mais que raiva: havia medo.Porque homens como ele reconheciam instintos —e o que vivia nos olhos de Lucius Caelum não era de uma criança.
...
O crepúsculo caía sobre Valen, tingindo as ruas de tons dourados e lilás.O som dos ferreiros encerrando o trabalho, o cheiro de pão assado das tavernas e o burburinho do comércio criavam uma ilusão de normalidade.Mas quem conhecia o silêncio sabia — algo havia mudado.
Do alto do telhado da Guilda Caelum, Kael observava a cidade com olhos de predador.A capa negra se movia com o vento, e o brilho discreto de seu douqi sombrio cintilava como fumaça em torno do corpo.
Abaixo, Friaren caminhava entre as barracas, fingindo olhar os tecidos de um mercador.O olhar dela, porém, estava distante — analisando cada movimento, cada sussurro.Duas figuras diferentes, mas sincronizadas na mesma percepção: o ar estava pesado demais.
Kael tocou a runa em seu colar — um sinal combinado para comunicação silenciosa.Friaren respondeu erguendo um pano azul, o gesto que significava "perigo vago, ainda não visível".
Pouco depois, ela voltou à guilda, os passos leves, mas o rosto pensativo.Kael já a esperava no corredor principal, descendo pela janela como uma sombra.
"Eles estão por toda parte," disse ele em voz baixa.Friaren ergueu uma sobrancelha. "Eles quem?""Homens sem olhos de trabalhador. Roupas simples demais, mas botas limpas. Soldados disfarçados."Ela cruzou os braços. "Do barão?"Kael assentiu. "Provavelmente. Estão rondando desde o nascer do sol. Observam quem entra e quem sai."
Friaren respirou fundo, depois olhou pela janela da guilda — o letreiro com o símbolo dos sete elementos e a espada refletia o brilho do entardecer."Lucius disse que o barão atacaria por orgulho, não por estratégia...""E parece que ele estava certo," respondeu Kael. "Mas o orgulho é perigoso. Faz os homens agirem como feras feridas."
Silêncio.
Então Friaren falou, com um leve sorriso:"Sabe, às vezes esqueço que você também é sábio."Kael riu de leve, um som quase raro. "E eu esqueço que você ainda é uma criança.""Tenho doze, não seis.""E eu, vinte e seis, o que me dá direito de te chamar de pequena filósofa."
Ela revirou os olhos, mas o riso que se seguiu quebrou a tensão por um breve instante.
Logo, ambos ouviram passos atrás de si.Era Lyara, com o cabelo preso e expressão séria."Vocês também sentiram?"Kael assentiu. "Sim. O barão começou a mover as peças. Vai tentar quebrar nossa imagem antes de tentar atacar de novo."Lyara apertou o punho. "Ele subestima Lucius. Isso vai ser um erro caro."
Friaren olhou para ela e perguntou suavemente:"Você ainda sente medo?"A amazona sorriu — cansada, mas firme."Sinto. Mas agora não por mim. Por quem ousar ameaçar nossa casa."
A palavra "casa" pairou no ar.Para todos ali, a guilda Caelum já era mais do que um abrigo. Era um lar, um símbolo do que eram capazes de proteger.
Kael se afastou da janela, o tom sério novamente."Vou seguir alguns deles esta noite. Descobrir onde se escondem.""Quer que eu vá junto?" perguntou Friaren."Não. Preciso que fique e mantenha a magia de alarme ativa. Se tentarem algo, quero saber antes deles entrarem no quarteirão.""Entendido."
Lyara colocou a mão no ombro de Friaren."Eu ficarei com as meninas. Se algo acontecer, nos escondemos na sala subterrânea. Lucius deixou instruções."
O luar começou a dominar o céu, e a cidade de Valen mergulhou num silêncio suspeito.Kael sumiu nas sombras da rua, movendo-se como uma lembrança esquecida.Friaren, sozinha na sacada, olhou para o horizonte — o vento tocando seus cabelos brancos.O olhar dela era tranquilo, mas decidido.
"O mundo muda rápido quando o medo tenta se impor," murmurou ela. "Mas Lucius... ele sempre transforma medo em força."
Ela fechou os olhos e sentiu o fluxo dos elementos ao redor.Fogo, água, vento, terra, relâmpago, luz e trevas — todos vibravam de forma caótica, como se o próprio mundo pressentisse o que estava por vir.
E no coração da cidade, as sombras começaram a se mover.Silenciosas. Ordenadas.
...
A noite em Valen era fria e quieta, mas o silêncio escondia mais do que descanso — escondia intenções.
Kael caminhava pelas vielas como parte da escuridão, o douqi sombrio envolvendo-o em ondas suaves, abafando som e presença.Cada passo era calculado, cada respiração controlada.Ele observava três homens encapuzados virando a esquina em direção ao setor leste da cidade — o lado mais pobre, onde a guarda raramente patrulhava.
Um deles olhou por cima do ombro."Tem certeza de que é aqui?" sussurrou.O outro respondeu: "O barão quer que vigiemos a guilda, não que entremos. Ele disse que há... coisas lá dentro.""Coisas?""Dizem que o garoto controla monstros. Que o lobo dele devora gente."
Kael sorriu por trás da máscara.Monstros... talvez estejam certos.
Esperou até que os três se separassem. Um ficou de vigia, outro desapareceu numa casa abandonada, e o terceiro subiu num telhado para observar a rua principal.Foi esse que Kael seguiu.
O som de metal roçou discretamente — uma lâmina curta, leve, preparada.O homem se virou, mas só viu escuridão.Quando tentou falar, algo o agarrou pela gola e o puxou com força brutal.
Em um piscar de olhos, ele estava preso contra a parede, uma adaga encostada no pescoço.
"Quem te mandou?"A voz de Kael era calma, mas carregada de ameaça.
O homem tentou reagir, mas Kael aplicou pressão com o cotovelo na garganta."Se mentir, eu corto um músculo por resposta errada. Começando pela língua."
O espião empalideceu. "O... o barão! Barão Valcrest! Ele nos paga!""Por quê?""Disse pra observar os movimentos da guilda... e pra enviar relatórios. Há outro grupo, mais forte, que vai chegar amanhã à noite..."Kael estreitou os olhos. "Outro grupo?""Mercenários. Vieram de fora. Homens com armaduras negras e olhos pintados..."
A menção fez o sangue de Kael gelar.Olhos pintados... Espadas Negras?
Mas ele manteve o rosto impassível."Quantos?""Seis... talvez sete. Um deles é... diferente. Usa máscara. O barão fala com ele como se fosse superior."
Kael não esperou mais.Um golpe certeiro na nuca fez o homem desmaiar.Jogou o corpo por sobre o ombro e desapareceu nas sombras.
Na sala inferior da Guilda Caelum, o ambiente estava à meia-luz.Lucius o esperava — sentado, mãos entrelaçadas, expressão fria.A luz do cristal mágico refletia nos olhos dourados do garoto, fazendo-os parecer chamas contidas.
Kael jogou o prisioneiro ao chão."Um dos espiões do barão. Fala demais quando está com medo."
Lucius observou em silêncio por um instante, depois falou:"Friaren, traga um pouco de água. Lyara, peça a Aurus para vigiar lá fora."
O lobo, Aurus, soltou um rosnado baixo em resposta, os olhos prateados brilhando como lâminas.Friaren saiu sem discutir, e o ar dentro da sala pareceu ficar mais denso.
Lucius se aproximou do homem desmaiado, levantando-o pelo queixo."Você tem duas escolhas," disse, num tom sereno, quase gentil. "Ajudar sua consciência a sobreviver... ou ajudar meu lobo a jantar."
O homem abriu os olhos de repente, tremendo."N-não! Eu falo! Eu falo!"Lucius deu um leve sorriso. "Então comece."
As informações vieram em pedaços — ordens recebidas em cartas seladas, pontos de vigia ao redor da guilda, rumores espalhados em tavernas, e por fim… o nome de um grupo contratado para o "trabalho sujo".
"Os Espadas Negras."
Kael trocou um olhar rápido com Lucius."Eles existem mesmo," murmurou ele.Lucius respondeu calmamente: "E agora estão vindo."
Friaren voltou com um pano molhado e o limpou o rosto do prisioneiro, tentando manter a compostura."Lucius... se forem mesmo eles, o barão não tem ideia do que está invocando.""Tem, sim," respondeu o garoto. "Ele só acha que pode controlá-los."
Lucius se afastou, as mãos nos bolsos, olhando para o símbolo da guilda entalhado na parede — os sete elementos e a espada central."Kael, quero você vigiando a estrada norte. Se eles entrarem por lá, saberei antes que cruzem os portões.""Entendido.""Lyara, mantenha os aprendizes dentro. Nada de missões externas. Se alguém pedir ajuda da guilda, vamos analisar cada detalhe antes de aceitar.""Certo."
Ele então olhou para o homem amarrado."E quanto a ele?" perguntou Friaren.Lucius olhou para Aurus, que se aproximou lentamente, o ar pesado e frio."Vamos apenas dizer," murmurou Lucius, "que ele não vai lembrar de nada... por um bom tempo."
O homem tentou gritar, mas Aurus soltou um rosnado tão grave que o som morreu na garganta.Um instante depois, desmaiou outra vez.
Lucius virou-se e começou a subir as escadas."O barão quer brincar de guerra nas sombras," disse, a voz ecoando na pedra."Então jogaremos... mas com regras nossas."
E no andar superior, o símbolo da guilda brilhou levemente — como se os elementos respondessem ao chamado de seu mestre.
