A noite cobria Valen com uma névoa espessa.As ruas estavam desertas, o vento carregava o cheiro de ferro — e silêncio.
Lucius estava sozinho no salão principal da guilda.As velas tremeluziam, projetando sombras que dançavam nas paredes cobertas de mapas e registros de missão.Diante dele, uma pequena esfera escura flutuava — um fragmento de alma condensada.
"Chegou a hora," murmurou.
Desde a emboscada, algo dentro dele não parava de pulsar.O acúmulo de almas que havia devorado ao longo dos meses — de bandidos, bestas mágicas e mortos no campo de batalha — se agitava como uma maré contida.Não eram apenas ecos de vida… eram lembranças, instintos, fragmentos de existência querendo se fundir, querendo propósito.
Lucius fechou os olhos.A temperatura caiu de repente.Os símbolos antigos gravados no chão começaram a brilhar em um azul profundo — a cor de suas pupilas, azul com tons de cinza, fria e serena como aço molhado.
O poder fluiu.Não era uma explosão, mas um crescimento constante, como raízes se espalhando pela terra.Ele guiava as almas, moldava-as, purificava o que restava de ódio e medo — e guardava apenas a força, a essência, o entendimento.
Cada alma devorada trazia um fragmento: a ferocidade de uma fera, a coragem de um guerreiro, o lamento de um mago moribundo.Agora, tudo se unia dentro dele.O nível de sua alma rompeu barreiras invisíveis — Alma Nível 8.
Um relâmpago silencioso percorreu o salão.A energia ao redor se transformou.As runas brilharam em múltiplas cores — vermelho, azul, verde e branco.Lucius abriu os olhos lentamente, observando as faíscas elementares se entrelaçando em torno de seus dedos.
"Magia não é apenas domínio," murmurou. "É compreensão."
O ar à sua volta se curvou, e por um instante ele sentiu todos os elementos responderem — o calor do fogo, o fluxo da água, a rigidez da terra, a leveza do vento.Relâmpago ainda era seu trono, mas agora havia pontes para além dele.
De súbito, uma voz suave ecoou na escada.
"Você não dorme mais, não é?"Friaren descia, usando um manto branco, os olhos atentos mas cansados.
Lucius sorriu de leve, a luz azul refletindo em suas pupilas."Alguns caminhos não esperam o amanhecer."
Ela se aproximou, olhando o círculo de energia que lentamente se desfazia."Está... diferente. Mais frio. Mas ao mesmo tempo... mais vivo."
Lucius respirou fundo."Talvez porque, por um instante, todas aquelas vozes finalmente se calaram."
...
O chão ainda fumegava das runas desfeitas quando Lucius se ergueu.Friaren observava em silêncio, o olhar dividido entre fascínio e apreensão.Do lado de fora, o vento noturno uivava entre as torres, e algo na atmosfera parecia... pesado.
O ar da noite girava em redemoinhos suaves dentro do salão de treino.Lucius respirava fundo, concentrado, as mãos abertas diante do corpo.Correntes de vento formavam linhas sutis ao redor de seus braços — uma dança invisível, viva, e cheia de poder contido.
Friaren observava de longe, curiosa."Isso não é relâmpago," comentou.Lucius sorriu de canto. "Não. É o presente que um mago do vento deixou pra mim antes de morrer."
As lembranças daquele homem — Darian Velos, antigo mago de guerra — ecoavam vivas em sua mente. Um gênio no controle do vento, assassinado anos atrás por mercenários rivais. Entre as memórias que Lucius devorou, os feitiços de Darian se destacavam pela precisão e velocidade.
Lucius ergueu o braço direito e murmurou:"Lâmina de Vento."
O ar pareceu cortar a si mesmo.Um disco translúcido, girando a uma velocidade absurda, cruzou o salão e partiu um pilar de pedra ao meio antes de desaparecer em silêncio.Friaren piscou, surpresa."Isso foi… perigoso."Lucius deu de ombros, satisfeito. "E rápido."
Ele então moveu os dedos, moldando novas runas.Uma aura leve o envolveu — e o corpo dele pareceu ficar mais leve, mais nítido, quase impossível de seguir com os olhos."Supersônico."Em um piscar, Lucius desapareceu e reapareceu do outro lado do salão, o vento rugindo atrás dele como se tivesse rompido o ar.
Friaren cruzou os braços, impressionada."Você está começando a parecer um vendaval."Lucius riu, coçando a nuca. "Mais útil do que parecer um raio o tempo todo."
Ele fechou os olhos e traçou um selo no ar.Uma leve corrente de vento se espalhou, percorrendo o chão e as paredes, antes de desaparecer como se tivesse sido engolida pela noite."Batedor do Vento. Um feitiço de reconhecimento. O vento me conta o que toca."
"Então agora pode sentir quando alguém se aproxima?""Exato," respondeu Lucius, abrindo um sorriso satisfeito. "Parece que o mago Darian ainda tinha algo a ensinar, mesmo morto."
Antes que Friaren pudesse responder, passos rápidos ecoaram pelo corredor.Kael surgiu, o capuz escuro molhado pelo suor.Atrás dele, dois aprendizes traziam um homem amarrado e ensanguentado.
"Pegamos um deles," anunciou Kael. "Estava rondando a entrada dos fundos. Não é qualquer ladrão — ele sabe se mover como soldado."
Lucius se aproximou. O prisioneiro tremia, mas manteve os olhos duros.O garoto o fitou em silêncio por alguns segundos, depois pousou a mão sobre sua cabeça.
"Não precisa falar," murmurou Lucius. "Eu posso ouvir o que sua alma grita."
O homem arquejou quando uma onda fria percorreu o ar.A energia espiritual de Lucius sondou suas memórias — flashes de ordens, símbolos e vozes desconhecidas. Quando recuou, o olhar do garoto estava sombrio.
"Símbolo de espada sobre lua partida," disse.Kael franziu o cenho. "Espadas Negras."
Friaren sentiu o ar ao redor pesar. "Eles vieram atrás da guilda?"
Lucius assentiu."E não são poucos. Estão se movendo pelo norte. Parece que querem testar a nossa força... ou o quanto aguentamos antes de quebrar."
Kael cerrrou os punhos. "Quer que eu reúna o grupo e acabe com eles antes que cheguem?"
Lucius negou com um leve gesto."Não. Vamos deixá-los vir. Uma emboscada funciona melhor quando o inimigo acredita que tem a vantagem."
Ele olhou para o símbolo da guilda pendendo do teto, balançando suavemente ao vento.Os olhos acinzentados brilharam sob a luz bruxuleante."Eles acham que caçam. Mas nós é que estamos afiando as lâminas."
...
O vento noturno soprava sobre Valen, carregando o cheiro de chuva distante.A cidade dormia, mas dentro da Guilda Caelum, ninguém descansava.
Lucius estava de pé diante do grande mapa da região, iluminado por cristais mágicos.Linhas traçadas à mão indicavam as rotas de acesso, as saídas e becos que circundavam a guilda.Kael estava ao lado dele, ajustando pequenas marcações feitas com carvão.
"Eles vão vir pelo norte," disse o guerreiro, a voz baixa. "Os becos são estreitos, ótimo terreno pra emboscada, mas ruim pra recuar."
"Não vamos recuar," respondeu Lucius, traçando um novo círculo sobre o mapa. "Aqui será o ponto de impacto. Friaren, você cuida da retaguarda — qualquer um que tentar fugir, será seu alvo."
Friaren assentiu, calma, o olhar firme. "Entendido."
Layra apareceu carregando duas lanças e um manto de couro reforçado."Os aprendizes já estão posicionados nos andares superiores. Nira e Naya estão com o lobo — e sim, prometeram não fazer besteira."Ela sorriu de leve, embora o tom fosse sério.
Lucius olhou para ela. "Bom. O importante é manter todos em segurança. Essa luta não é só por nós — é pela cidade que acreditou na Caelum."
Kael ajeitou o capuz. "Você fala como um velho general."Lucius deu um meio sorriso. "Ou talvez eu só tenha lido almas demais."
Do lado de fora, Aurus patrulhava o pátio.O lobo agora era enorme — a altura de um cavalo, músculos definidos sob o pelo cinza-escuro, e olhos que brilhavam como aço sob a lua.Seu faro cobria o perímetro inteiro, e o instinto selvagem o deixava inquieto.Friaren passou por ele, pousando a mão sobre a cabeça do animal."Sente, não é? A aproximação."Aurus rosnou baixo, confirmando."Então é real," ela murmurou.
Lucius saiu da guilda e ergueu a mão para o céu.Runas começaram a brilhar, flutuando em círculos concêntricos.Uma densa barreira de vento formou-se ao redor do prédio, quase invisível, mas poderosa.Era o Escudo da Calmaria, um feitiço que aprendeu com as memórias de um mago antigo — capaz de mascarar presenças e amortecer som.Ninguém do lado de fora perceberia o movimento dentro da guilda.
"Isso deve segurar a curiosidade dos civis," disse ele, voltando-se para o grupo. "A partir de agora, ninguém entra, ninguém sai."
Layra se aproximou, cruzando os braços."Você tem certeza de que devemos esperar? Se formos até eles agora, talvez peguemos o inimigo desprevenido."
Lucius olhou para o horizonte, onde a lua se erguia pálida."Às vezes, o caçador precisa deixar o predador acreditar que venceu. Só assim o instinto o expõe."
Kael assentiu. "Um plano perigoso, mas eficaz."
Dentro da guilda, os aprendizes se moviam em silêncio.Alguns afinavam suas armas; outros reforçavam feitiços de defesa.O velho mago de água traçava runas nas janelas, criando uma névoa densa que cobria o andar térreo.Friaren caminhava entre eles, transmitindo calma com um simples olhar.
Nira e Naya, curiosas, observavam pela janela, abraçadas uma à outra.Mesmo tão jovens, a energia em suas almas era intensa — um brilho que fazia os cristais próximos reagirem.Lucius notou e sorriu discretamente."Um dia, vocês duas serão o orgulho dessa casa."
As gêmeas sorriram, sem entender o peso daquelas palavras.Layra observava em silêncio, uma ponta de preocupação no olhar materno."Lucius… você não vai lutar sozinho, vai?""Não sozinho," respondeu ele. "Mas estarei onde o perigo for maior. Alguém precisa segurar o coração da batalha."
O relógio marcava pouco antes da meia-noite.Do lado de fora, o vento parou — um silêncio anormal tomou as ruas.Kael ergueu o rosto, os olhos cintilando sob o capuz.
"Eles estão vindo," disse, em tom baixo.
Lucius respirou fundo, fechando os olhos por um instante.Dentro de si, as almas que guardava começaram a sussurrar — ecos de guerreiros, magos e feras.A energia espiritual se ergueu como uma maré calma, disciplinada, aguardando comando.
Quando abriu os olhos, suas pupilas azul-acinzentadas refletiam a luz da lua."Que o vento nos guie," murmurou. "E que a Guilda Caelum permaneça de pé."
E então, o silêncio se quebrou — passos pesados, o som de metal, o roçar de capas.As Espadas Negras haviam chegado.
