O tempo havia trazido paz.Depois do conflito com o Barão Valcrest, a Guilda Caelum consolidou-se como símbolo de força e equilíbrio. Nenhum nobre ousava mais desafiar o nome de Lucius Caelum — aquele que, em silêncio, impôs respeito onde antes reinava o caos.
Valen florescia.As ruas tornaram-se seguras, os portões se abriam a viajantes, e mercadores voltaram a cruzar os campos que antes eram terra de bandos e saqueadores.Os dezoito ducados continuavam turbulentos, mas em Valen, por um instante raro, reinava a calma.
Lucius observava tudo do terraço da guilda.A brisa do entardecer carregava o cheiro de madeira e ferro, e o som distante de espadas ecoava no pátio de treinamento.Kael ensinava Kellen e Darek os fundamentos do Douqi, enquanto Friaren supervisionava Mira em seus primeiros experimentos com magia de vento.A vida seguia — simples, mas viva.
Lucius, porém, estava em outro lugar.Seu corpo ali, sua mente… distante.
Caminhou até o pátio vazio, após o treino terminar. O chão ainda quente pelo sol do dia.Sentou-se com a espada apoiada sobre os joelhos e olhou para o horizonte, onde o céu tingia-se de vermelho e ouro.
Por um momento, esqueceu o título de mestre, de líder, de guerreiro.Era apenas um homem — tentando entender.
Levantou a espada devagar, observando o brilho na lâmina.O metal parecia o mesmo de sempre, mas o ar em torno... estava diferente.Lucius respirou fundo, e sua mente ficou em silêncio.
Ele moveu a espada — leve, como o sopro do vento.E sentiu o peso da montanha em seu braço.Em seguida, baixou-a com lentidão, como se o metal fosse feito de pedra, e o chão pareceu flutuar sob seus pés.
"Leveza... e peso..." murmurou."Um não existe sem o outro."
Fechou os olhos.Tudo — o vento, o som, o calor — misturava-se em uma mesma corrente.O que é pesado para o corpo é leve para o espírito.O que é leve demais... pode esmagar uma alma despreparada.
A compreensão o atingiu de forma silenciosa, quase imperceptível.Não era força física.Nem magia.Era percepção.
O mundo parecia diferente — mais nítido, mais profundo.A pedra sob seus pés, a lâmina em sua mão, o ar que tocava sua pele… todos dançavam no mesmo ritmo, como se estivessem vivos.
Friaren, que observava de longe sem querer interromper, notou o olhar dele.Não era o olhar de alguém em transe, mas o de quem entendeu algo que não se explica.Algo que muda a forma de existir.
Lucius abriu os olhos e sorriu — um sorriso leve, mas cheio de significado."Tudo tem um peso," disse, sem se dirigir a ninguém em especial."Mas só quando aceitamos esse peso, podemos entender o que é ser leve."
O vento soprou mais forte.As folhas do pátio giraram ao redor dele, e por um instante, Friaren jurou ver a lâmina refletir o céu inteiro.
Lucius levantou-se, guardando a espada."Hoje o mundo me ensinou algo," murmurou. "E eu ainda não sei se estou pronto para compreender tudo."
Enquanto o sol desaparecia no horizonte, um novo brilho nascia dentro dele.Um pressentimento.De que a calmaria... não duraria.
...
Lucius ainda observava o horizonte quando sentiu passos apressados atrás de si.O vento carregava o cheiro do ferro e da pressa — Kael.
"Lucius," chamou, sem fôlego, o rosto suado e os olhos tensos.Lucius voltou-se calmamente, guardando a espada. "Parece urgente."
Kael assentiu, respirando fundo."Recebi informações vindas de dois ducados ao norte… e, se forem verdadeiras, o equilíbrio das Terras Anárquicas está prestes a ruir."
Friaren se aproximou, atraída pelo tom sério na voz dele. "O que aconteceu?"
Kael olhou para ambos, depois para o pátio silencioso, certificando-se de que não havia aprendizes por perto."Foi descoberta uma mina de ouro no Ducato de Roulhen. Uma gigantesca. O tipo de achado que pode mudar o destino de um ducado inteiro."
Rogan, que retornava da torre de estudos, franziu o cenho ao ouvir."E isso significa... guerra."
"Exato." Kael cruzou os braços. "As alianças entre os dezoito ducados já estão frágeis. Com essa mina, Roulhen vai atrair ganância — nobres, milícias, até mercenários independentes. Um conflito é inevitável."
Um silêncio pesado pairou.O eco distante do vento parecia carregar o som de espadas se chocando, presságio do que viria.
Friaren olhou para Lucius, séria. "E Valen? Ficaremos no meio disso."
Lucius não respondeu de imediato.Observava o chão, pensativo, como se as raízes do mundo estivessem mudando sob seus pés.
"Se os ducados entrarem em guerra," disse Rogan, "não haverá território seguro por aqui. A anarquia voltará. E desta vez, em escala maior."
Lucius ergueu o olhar."O ouro desperta o pior dos homens. E quando a cobiça fala, a razão se cala."
Kael assentiu. "Precisamos decidir o que fazer antes que o caos chegue até aqui."
Na sala principal da Guilda Caelum
A notícia espalhou-se rapidamente, e todos os membros — veteranos e aprendizes — reuniram-se ao redor da grande mesa de pedra.As velas tremulavam, lançando sombras nas paredes e refletindo a tensão no ar.
Lyara, séria, foi a primeira a quebrar o silêncio."Se os ducados começarem a lutar, as rotas comerciais serão destruídas. A guilda perderá o fluxo de recursos e segurança."
Friaren cruzou os braços. "E não temos obrigações com este território. Não devemos morrer por causa da ganância de nobres."
"Concordo," disse Kael. "Precisamos buscar estabilidade — um lugar onde possamos crescer sem sermos arrastados pela loucura dos ducados."
Rogan apoiou as mãos sobre a mesa."Há um lugar," disse com tom grave. "Ao leste da Cordilheira das Bestas Mágicas. O Império O'Brien. Um dos seis grandes impérios de Yulan. Poderoso, estruturado… e estável."
Os aprendizes se entreolharam, surpresos."Um império?", murmurou Mira, a voz baixa. "Mas… tão longe daqui?"
"Distância não importa quando se busca futuro," respondeu Lucius, erguendo-se."O Império O'Brien é forte, governado com mão firme. Faz fronteira ao sul com a União Sagrada, e ao oeste com a Floresta das Trevas e as próprias Terras Anárquicas. É o coração do Norte. Se quisermos prosperar, será lá."
Friaren assentiu lentamente."Seria uma jornada longa. Mas… uma chance real de recomeçar."
Lyara olhou para as filhas, depois para os aprendizes. "Se é para garantir o futuro deles, eu apoio."
Rogan completou: "Levarei comigo todos os registros e artefatos mágicos. Se partirmos, não deixaremos nada de valor para trás."
Lucius olhou para cada um deles — seus companheiros, sua família, sua guilda.Os ventos do destino voltavam a soprar, e ele sentia isso em sua alma.
"Então está decidido," disse com firmeza."Caelum não pertence a um ducado — pertence ao mundo. Partiremos para o Império O'Brien.Lá, construiremos algo que o ouro não pode comprar: permanência."
Um coro de assentimentos ecoou na sala.Kael sorriu de lado. "Parece que os ventos mudaram outra vez."
Lucius respirou fundo e olhou pela janela.O céu estava limpo — mas o ar carregava o presságio de novas jornadas.
E, como sempre, ele seria o primeiro a caminhar rumo ao desconhecido.
...
Os dias seguintes foram de movimento constante.A Guilda Caelum, antes acostumada ao ritmo calmo de contratos e treinamentos, agora parecia um formigueiro em marcha.Caixas eram empilhadas, pergaminhos cuidadosamente guardados, armas e grimórios revisados uma última vez.Valen — a cidade que os abrigara, os testara e os fizera crescer — agora seria apenas um ponto distante na memória.
Kael supervisionava o carregamento de suprimentos, organizando com precisão quase militar."Não quero nada esquecido. Se for preciso deixar algo, que seja o que não pode nos seguir, não o que precisamos para começar de novo."
Rogan, com seu manto azul esvoaçando, revisava as runas protetoras que selariam os baús de magia e poções."Se formos atravessar as Terras Anárquicas, não podemos depender apenas de força. Precaução é o que mantém os vivos caminhando."
Friaren estava na sala principal, instruindo os aprendizes."Cada um terá responsabilidades na viagem. Kellen, vigiará o perímetro à noite. Mira, manterá as correntes de vento estáveis quando cruzarmos regiões perigosas. Darek, você cuidará da segurança física do comboio. Estamos entendidos?"
Os três assentiram com determinação.Mesmo jovens, sabiam que aquela jornada definiria seus futuros.
Lucius observava tudo do alto da varanda da guilda.O sol de fim de tarde tingia Valen de dourado — o mesmo tom que banhara o dia em que o barão viera, arrogante e cego para o destino.Agora, o barão mantinha distância.O nome "Caelum" já ecoava pelos ducados como uma força que nem mesmo nobres ousavam provocar.
Friaren aproximou-se, silenciosa como sempre."Vai sentir falta daqui?", perguntou, olhando a cidade que se estendia sob eles.
Lucius demorou a responder."Não da cidade," disse, por fim. "Mas das histórias que começamos aqui. Cada pedra, cada rua, é um lembrete de que o mundo muda — e de que nós mudamos com ele."
Ela sorriu. "Poético como sempre. Acha que o Império O'Brien é o nosso destino?"
Lucius virou o olhar para o horizonte."O destino não é um lugar, Friaren. É o caminho que escolhemos seguir até o próximo nascer do sol."
Naquela noite, a guilda reuniu-se uma última vez no salão principal.As luzes das tochas refletiam nas taças e nos rostos cansados, mas satisfeitos.Era um banquete simples, mas simbólico.
Kael ergueu o copo. "À Guilda Caelum. Que nosso nome ecoe além das montanhas."
"E que nenhum de nós esqueça o que somos," completou Rogan. "Não mercenários, nem caçadores — mas uma família."
Lyara e as filhas sorriram, enquanto Aurus, deitado próximo à lareira, erguia a cabeça, os olhos dourados brilhando sob o fogo.O lobo sabia — talvez melhor do que todos — que aquela seria uma longa jornada.
Lucius observou cada um deles.O riso de Naya e Nira, as histórias de Kael, a calma de Rogan, o olhar firme de Friaren…E, pela primeira vez em muito tempo, sentiu algo que há muito evitava: pertencimento.
Ergueu a taça."Ao amanhã," disse, com voz firme.E todos repetiram: "Ao amanhã!"
Na manhã seguinte, os portões de Valen se abriram.
O comboio da Guilda Caelum partiu em silêncio.Carros carregados de suprimentos, cavalos, armas e esperanças.O vento soprava do leste, vindo exatamente da direção do Império O'Brien, como se o próprio destino os chamasse.
Lucius caminhava à frente, capa negra ondulando, Aurus ao seu lado, com os olhos atentos e o faro aguçado.Kael seguia logo atrás, guiando os aprendizes.Friaren e Rogan fechavam a retaguarda, mantendo a proteção mágica.
Quando o último raio de sol tocou as muralhas de Valen, Lucius olhou para trás apenas uma vez.
"Foi aqui que começamos," murmurou. "Mas não é aqui que terminaremos."
E então, sem mais palavras, ele virou-se para o leste.A estrada se estendia como um rio de possibilidades — longa, perigosa, mas inevitável.
O vento soprou entre as colinas, levando consigo o nome Caelum,um nome que, em breve, ecoaria em terras muito além das fronteiras dos ducados.
