O vento que cruzava as Terras Anárquicas não carregava apenas poeira — trazia o cheiro de sangue e ferro.Caminhos sem lei serpenteavam entre colinas e florestas antigas, onde caravanas desapareciam e rumores nasciam.
Mas a caravana da Guilda Caelum avançava firme.O som das rodas sobre o solo seco misturava-se ao ritmo constante dos cascos e ao rugido baixo de Aurus, o lobo gigante que caminhava à frente, como um guardião vivo.
Bandidos observavam das encostas, cobertos por mantos rasgados.Olhos famintos, mas hesitantes.Quando o vento soprava e revelava o brilho dourado dos olhos da fera, os mais ousados recuavam — e o silêncio retornava às colinas.
"Eles nos seguem há meia hora," murmurou Kael, olhando por sobre o ombro."E vão continuar seguindo," respondeu Lucius, calmamente. "Até perceberem que não somos caça."
Lyara riu baixo, ajustando a espada nas costas."Então é melhor que aprendam rápido."
O grupo avançava com ritmo calculado, parando em pequenos vilarejos apenas o necessário para trocar suprimentos.Em alguns lugares, as pessoas se escondiam ao vê-los — a fama da Caelum havia corrido à frente, misturada com histórias exageradas de monstros e demônios.Em outros, eram recebidos com respeito e curiosidade.
A cada nova vila, Lucius observava o mundo.As casas simples, os templos abandonados, os olhares cansados — e pensava em como, mesmo nas terras sem rei, as pessoas ainda buscavam algo em que acreditar.
Depois de vários dias, o horizonte começou a mudar.As colinas deram lugar a planícies férteis, e torres brancas podiam ser vistas ao longe — o símbolo do Deus da Luz brilhando no alto de uma fortaleza.
"Estamos perto da fronteira do Reino de Calvet," disse Rogan, consultando um mapa antigo."Terra dos devotos da Luz. E, pelo visto, também um posto da Igreja."
Lucius estreitou os olhos. "Então veremos como a luz brilha quando ninguém está olhando."
Antes do pôr do sol, o grupo ouviu explosões mágicas ao longe.Ondas de energia pulsavam como trovões — uma luta entre magos de alto nível.Lucius ergueu a mão, sinalizando para que todos parassem."Friaren, barreira de vento. Vamos observar primeiro."
O grupo subiu uma colina coberta de grama alta.Abaixo, em um vale aberto, dois homens lutavam.
Um deles, envolto por luz dourada, vestia um manto branco com o emblema do Sol Sagrado.O outro, cercado por névoas negras, usava uma túnica escura com símbolos antigos — o Santo das Trevas.
A terra ao redor estava queimada e partida.Raios de luz cruzavam o céu enquanto escuridão se erguia em resposta.
Mesmo de longe, as vozes podiam ser ouvidas.
"Você ousa capturar almas puras dentro do território da Igreja da Luz?!" — rugiu o santo da luz, com a voz reverberando como trovão.O outro respondeu, calmo:"Almas puras não pertencem à Igreja. Pertencem ao mundo. A luz é apenas outra forma de prisão."
Lucius observava em silêncio, o olhar fixo."Eles lutam por poder, não por fé," murmurou.
Kael assentiu. "Dois lados de uma mesma moeda."
A luta atingiu o ápice.O santo da luz ergueu as mãos, e o céu pareceu se abrir.Uma coluna dourada desceu, condensando-se em uma lança imensa feita de energia pura.
Feitiço Proibido — Lança da Luz Sagrada.
A luz cortou o ar com um som agudo e perfurou o peito do santo das trevas.O impacto foi tão violento que o vale tremeu, e o silêncio caiu logo depois.
O santo da luz caminhou até o corpo, pegou o anel espacial, e o abriu com indiferença.Nada de valor.Ele bufou, jogando o anel de volta sobre o cadáver.
"Se ao menos o corpo dele fosse poderoso, poderia ser reutilizado por nós," disse, com nojo.E, sem olhar para trás, partiu em direção ao templo distante.
Quando o som dos passos desapareceu, Lucius desceu a encosta.Os demais o seguiram em silêncio.O corpo jazia imóvel — marcas negras cobriam a terra ao redor.
Lucius ajoelhou-se, estendendo a mão sobre o peito do morto.Um brilho azulado surgiu brevemente, e ele murmurou algo baixo — um sussurro que o vento levou.
A alma fragmentada do santo das trevas foi absorvida, dissolvendo-se como fumaça.Por um instante, o ar pareceu vibrar.
"Um mago do elemento trevas… e um poder de alma impressionante," disse ele, em voz baixa. "Mesmo corrompido, há conhecimento útil aqui."
Friaren se aproximou, hesitante. "Vai usar as memórias dele?"
"Não todas," respondeu Lucius, levantando-se. "Apenas o que o mundo tentou apagar."
Ele pegou o anel espacial e o guardou.Depois olhou o horizonte, onde o santo da luz desaparecera."Luz e trevas... Dois nomes para o mesmo ego."
Kael resmungou: "Acho que esse lugar vai feder a santidade por dias."
Lucius riu brevemente, mas o olhar já estava distante."Vamos sair daqui. A noite está chegando — e eu já vi o suficiente de deuses por hoje."
O grupo voltou para a estrada, deixando o campo devastado para trás.A lua surgiu, pálida, refletindo nas colinas.O vento carregava o eco distante da batalha — e, com ele, uma sensação incômoda.
Nem todos os monstros viviam nas sombras.Alguns caminhavam sob a luz.
...
A noite havia se instaurado sobre as planícies silenciosas.Lembrando do corpo do santo das Trevas, que ao absorver a sua alma, se tornou apenas uma concha vazia.Lucius, com os olhos azul-acinzentados refletindo o brilho distante das estrelas, mantinha a mão sobre o peito frio do morto.
Um leve murmúrio ecoou — não de dor, mas de ecos residuais de alma.
"Vamos ver o que você sabia..."A voz dele era calma, quase respeitosa, antes que um fio de energia negra se infiltrasse pelo cadáver.A alma remanescente do mago foi sugada, desmanchando-se como fumaça, até se fundir à alma de Lucius.
Por um instante, ele sentiu tudo — a dor, o desespero e a fé distorcida.As memórias começaram a se alinhar em sua mente como fragmentos de vidro colorido.
O mago… não era um monstro, mas um homem marcado por contradições.Havia servido à Igreja das Trevas por mais de quarenta anos, acreditando lutar contra a hipocrisia da luz.Mas o que Lucius viu o deixou em silêncio.
Os dois lados… eram idênticos.
Tanto a Igreja da Luz quanto a Igreja das Trevas buscavam a mesma coisa: almas puras.Ambas acreditavam que almas puras eram condutores perfeitos — oferendas que alimentavam seus "deuses".Mas por trás de suas preces e templos dourados, havia apenas medo, controle e sacrifício.
O mago das Trevas tinha descoberto isso.E era por isso que fugia — não da Luz, mas da mentira.
Lucius fechou os olhos.Nas profundezas de sua alma, as lembranças do homem morto se manifestaram como runas negras e chamas azuis, girando em torno de um vórtice de energia.Ali, ele viu algo além da magia comum.Viu leis.
— "As Leis Profundas das Trevas..." — sussurrou uma voz na memória.
O mago havia registrado tudo o que compreendia, e Lucius agora via com clareza.
As Leis Profundas das Trevas
Essência das Trevas.O primeiro domínio. A energia pura que devora, molda e oculta.A escuridão não é ausência — é poder vivo.
Doppelganger das Sombras.Toda sombra é um reflexo do ser. O mago aprendeu a dar forma à sua própria escuridão, criando cópias conscientes que pensavam e agiam.Um poder perigoso… e solitário.
O Mistério do Mal.A corrupção das emoções. O uso do medo, da dor e do ódio como armas.A manipulação da vontade — não apenas dos inimigos, mas também do próprio coração.
O Domínio das Trevas.Um campo absoluto. Dentro dele, o mundo se curva ao portador das sombras.Silêncio, confinamento, e o apagamento de toda energia contrária.
O Mistério de Devorar.A fome pura. Tudo o que toca é consumido — matéria, energia, até alma.Lucius sentiu um arrepio percorrer sua espinha ao compreender que esse poder se assemelhava ao seu próprio instinto de absorver almas.
E o Mistério da Distorção.O limite entre o real e o irreal.Um poder capaz de dobrar espaço, enganar sentidos e fazer o mundo parecer se despedaçar diante da escuridão total.
Lucius respirou fundo, abrindo os olhos.As estrelas pareciam mais distantes.O ar ao redor dele se moveu sutilmente, e por um instante, sua sombra se estendeu por metros — viva, pulsante, como se respirasse.
"Essas leis..." murmurou. "Não são apenas poder. São a estrutura do próprio mundo."
Ele olhou para o anel espacial do santo morto e o fechou lentamente.Dentro de si, parte da energia absorvida ainda vibrava, indomada, ressoando com sua alma.
Friaren se aproximou, observando-o em silêncio."Você está bem, Lucius?"
Ele demorou um momento para responder."Sim. Só... vi demais.""Algo útil?""Talvez. Mas algumas verdades não são para serem compartilhadas — ainda não."
Ela assentiu, respeitando o tom em sua voz.O grupo seguiu viagem pouco depois, deixando para trás o campo de batalha silencioso.Mas Lucius sabia que o que havia aprendido naquela noite mudaria tudo.
Porque, pela primeira vez, ele vislumbrara um caminho que ia além da magia e do douqi —um caminho que tocava as Leis que sustentavam o universo.
...
Lucius caminhava sozinho pelo vale, afastado do acampamento.O vento frio arrastava a poeira do campo de batalha enquanto a lua pálida refletia em seus cabelos prateados.O mundo parecia calado — como se aguardasse algo.
Desde que absorvera a alma do mago santo das Trevas, uma transformação profunda se agitava dentro dele.Não era apenas poder... era presença.A energia de sua alma pulsava de forma diferente, como se respirasse, viva, consciente.
Ele se ajoelhou no solo, fechando os olhos.Em sua mente, um vasto oceano negro se abriu — calmo e infinito.E naquele mar, pequenas faíscas de luzes eram engolidas uma a uma.
"Então é isso…" murmurou. "A verdadeira natureza da escuridão não é destruir a luz — é absorvê-la."
As palavras pareciam simples, mas carregavam o peso de um entendimento ancestral.O poder que antes ele apenas manipulava agora respondia.A energia das trevas ao redor do vale começou a se mover, lenta, obediente, fluindo para seu corpo como uma maré silenciosa.
Um rugido baixo ecoou em sua mente.Era a alma dele, expandindo-se.As barreiras do nono nível mágico ruíam como vidro quebrado.
A essência do mago santo, ainda pulsando em sua alma, dissolveu-se completamente, tornando-se combustível para a ascensão.A consciência de Lucius atravessou um limiar invisível — um estado onde magia e vontade se tornavam um só.
Nível Santo.
O mundo ao redor mudou.
Ele podia sentir cada partícula no ar, cada vibração na terra, cada sopro de energia viva dentro de si e fora dele.Tudo possuía ritmo, fluxo e lei.Era como se as próprias Leis do Mundo estivessem sussurrando em sua mente.
A energia mágica em seu corpo se reorganizou, assumindo uma forma pura e estável.Era densa, ilimitada, e obedecia ao menor comando.Lucius estendeu a mão — e o espaço diante dele se dobrou levemente, como se a realidade tivesse respirado junto.
A Essência das Trevas se manifestou em torno dele:um manto escuro, translúcido, ondulando como fumaça viva, mas sem emitir frio, sem som.Era o poder em sua forma natural —a presença que devora e unifica.
Ele abriu os olhos.Dentro de suas pupilas, uma segunda cor se formava —um anel negro girando em torno da íris, como se um fragmento de abismo o observasse de volta.
"Agora entendo..."Sua voz ecoou, grave e serena."As trevas não são inimigas da criação. Elas são o intervalo entre o que existe e o que deixa de existir. O limite de tudo."
Por um breve instante, Lucius sentiu que podia se fundir ao próprio vazio —mas então respirou fundo, contendo-se.Ainda era cedo. A compreensão era apenas o início; o domínio exigiria tempo, paciência e propósito.
Um som distante o trouxe de volta.Friaren o observava à distância, silenciosa.Ela o havia seguido em segredo, preocupada com o estado dele após o confronto.
"Você... mudou," disse ela, aproximando-se."Sim." Ele olhou para o horizonte. "Não sou mais o mesmo."
"É perigoso?""Tudo que dá poder... é."
Friaren sorriu de leve, aceitando a resposta.Lucius se ergueu, limpando o pó das vestes, e olhou para o céu.Seu olhar era calmo, mas havia algo diferente — uma profundidade fria, uma consciência que transcendia o humano.
"Estamos próximos de partir para o Império O'Brien," disse ela. "A guilda vai precisar de direção."
"Eles terão," respondeu ele. "Mas antes, há algo que preciso entender — e depois ensinar."
"Ensinar?""Sim. Sobre o corpo, o douqi... e sobre o que está além: o Potencial."
Ele olhou novamente para suas mãos, agora banhadas por uma tênue aura negra e prateada."Assim como a magia toca as Leis, o corpo deve tocar o próprio fluxo da realidade. Só então um guerreiro desperta o verdadeiro caminho para o Santo."
O vento soprou com força, e o manto das trevas ao redor dele se desfez, dissolvendo-se no ar como fumaça.
A nova jornada de Lucius havia começado —não apenas rumo ao Império, mas ao domínio sobre si mesmo e sobre as Leis que regiam os mundos.
