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Chapter 16 - Capítulo 15 — As Cinzas Falam

A floresta que cercava o norte de Valen era densa e úmida, coberta por uma névoa pálida que se erguia do solo como o hálito de um animal adormecido.O vento frio balançava as folhas altas, e o som distante da água correndo lembrava uma respiração constante, viva.Era ali, entre as árvores, que o grupo dos Espadas Negras havia se escondido — confiantes de que ninguém ousaria caçá-los tão perto da fronteira.

Lucius se ajoelhou, tocando o chão com a palma da mão.Partículas de mana se ergueram como poeira dourada, formando uma pequena ilusão da área."Três fogueiras. Seis sentinelas no perímetro. Dois magos dentro do armazém principal," murmurou.

Kael se abaixou ao lado dele, olhos sombrios analisando as formas translúcidas."Reconhecimento mágico... impressionante. Parece que não precisam mais de mim para rastrear."

Lucius deu um sorriso discreto. "Prefiro não precisar, mas continuo gostando da sua companhia."

Aurus, o lobo, moveu-se silenciosamente entre as sombras, farejando o ar. Seu pelo negro parecia fundir-se à noite.Rogan, logo atrás, conjurava runas de energia azul em torno de si. "Tem um encantamento de barreira fraco ali adiante, cerca de cinquenta metros. Feito por um mago de quinta ordem, no máximo."

Lucius assentiu. "Que conveniente. Um escudo frágil para esconder gente ainda mais frágil."

Kael sorriu. "E o plano?"

Lucius se levantou, limpando a poeira das mãos. O brilho azul-acinzentado de suas pupilas reluziu brevemente."Dividimos o ataque em três frentes. Eu e Rogan avançamos pelo centro. Kael, você elimina os guardas de fora, sem barulho. Aurus bloqueia a retaguarda. Ninguém sai vivo — nem mensagens, nem gritos."

O silêncio que seguiu foi pesado, solene.Mesmo Rogan, o mago veterano, sentiu o peso daquelas palavras.

Lucius continuou:"Não por vingança... mas por proteção. Eles atacaram inocentes, sequestraram, venderam. Não há redenção para quem lucra com sofrimento."

Kael apenas assentiu.Rogan respirou fundo. "E Friaren? Ela não vai gostar de saber que fez isso sem ela."

"Ela vai entender," respondeu Lucius com calma. "Há lutas que precisam de sangue antes de haver paz."

Quando a lua atingiu o topo do céu, a operação começou.

Kael desapareceu nas sombras.Os sons de gargantas cortadas e corpos tombando sem um gemido ecoaram como um sussurro.Rogan murmurava encantamentos — círculos de mana azul se expandindo sob seus pés, criando uma névoa densa que abafava o som das folhas e confundia os sentidos.Lucius caminhava à frente, o ar tremendo em torno dele com o fluxo de sete elementos equilibrados.Aurus movia-se em silêncio, olhos dourados faiscando entre as árvores — o predador invisível da noite.

Quando chegaram ao acampamento, os primeiros bandidos já estavam mortos.Lucius ergueu a mão. Um gesto, e o ar se partiu com um "shhhh" cortante.Lâmina de Vento.

O disco supersônico de energia cortou três homens de uma vez antes que pudessem gritar.O sangue evaporou no calor do relâmpago que veio logo depois.Kael reapareceu ao seu lado, lâmina suja. "Centro limpo."

"Ótimo. Vamos ao galpão," disse Lucius.

Dentro, o cheiro era de suor e sangue.Criminosos jogavam cartas sob o som abafado de gargalhadas.No fundo, dois magos discutiam sobre suprimentos — um deles, mais velho, emanava uma aura dourada fraca: magia da luz.Rogan o sentiu imediatamente. "Um mago de luz... nível seis, talvez."

Lucius ergueu o dedo aos lábios.Um segundo depois, o chão vibrou — e a estrutura de madeira rachou.Lâminas de vento varreram o salão, seguidas por explosões de relâmpago.O ataque foi rápido, limpo, devastador.

O mago da luz tentou reagir — ergueu um campo radiante, mas Lucius desviou e encurtou a distância, o olhar frio.Uma esfera elétrica concentrou-se em sua mão."Relâmpago ascendente."

O feitiço atingiu o mago no peito, lançando-o contra a parede.O homem gritou, o brilho dourado de sua magia se apagando — e então tudo ficou em silêncio.

Lucius se aproximou lentamente, ajoelhando-se ao lado do corpo caído."Você... era luz," murmurou. "Mas se deixou apagar por escuridão."

A mão dele tocou o peito do inimigo, e por um instante o ar ao redor pareceu congelar.O fluxo da alma do mago — já sem consciência — foi puxado, purificado e absorvido.Lucius fechou os olhos, deixando as memórias fluírem:mantras de luz, círculos de cura, explosões radiantes, barreiras sagradas.Conhecimento puro, sem emoções, sem dor.

Quando se levantou, a aura dele brilhou por um instante com tons dourados, logo ocultados.Rogan observava em silêncio — sem julgamento, apenas curiosidade."Então é assim que você cresce," murmurou.Lucius abriu um pequeno sorriso. "Eu cresço pelo que deixaram para trás."

Do lado de fora, o som de passos cessou.Kael reapareceu, ensanguentado, mas sereno. "Tudo limpo."

Lucius olhou ao redor — corpos, armas, fumaça."O ninho está vazio," disse ele, em voz baixa."Mas o predador ainda vive."

Kael franziu o cenho. "O barão?"

Lucius assentiu."O barão... e o que quer que o proteja."

O vento noturno soprou, levando consigo o cheiro metálico da vitória e do luto.Lucius olhou para a lua alta — o reflexo prateado dançando em seus olhos azul-acinzentados.

"Uma alma de luz, devorada pela noite," murmurou. "Ironia... ou destino?"

Rogan respondeu calmamente: "Talvez ambos. Mas ainda somos nós que decidimos o que fazer com o amanhã."

Lucius sorriu de leve. "Então que o amanhã comece com fogo."

E o fogo, de fato, começou — consumindo o acampamento dos Espadas Negras até restar apenas cinzas.

A Guilda Caelum havia vencido,mas no coração da cidade, o Barão Valcrest sorria ao receber um relatório incompleto, acreditando que Lucius estava morto.E esse erro... custaria caro.

...

A notícia chegou antes do amanhecer.

Na mansão nobre de Valcrest, o barão ergueu-se bruscamente quando o mensageiro, ofegante, foi empurrado para dentro do salão."Meu senhor… os Espadas Negras… foram aniquilados."

Por um instante, silêncio.O barão, ainda de robe, olhou para o homem à sua frente — os olhos marejados, a respiração pesada."Como assim… aniquilados?""Todos, meu senhor. Nem rastros. As fogueiras ainda queimavam quando chegamos. O chão estava… preto. Nenhum corpo inteiro."

O barão sentiu o estômago revirar.As mãos trêmulas derrubaram a taça de vinho sobre o tapete."Isso não é possível… eles eram mais de trinta… e tinham dois magos de nível alto…"

O mensageiro engoliu seco. "As testemunhas disseram ter visto relâmpagos cortando a floresta. Um clarão que parecia o próprio sol. E… uma sombra em forma de lobo gigante."

A cor sumiu do rosto do barão.A lembrança de Lucius — o olhar calmo, a voz contida, e aquela aura fria e insondável — voltou como um soco no peito."Eles foram atrás dele…" sussurrou.A mente acelerava, o suor escorrendo pela testa."E ele foi atrás deles."

Pela primeira vez, o homem que controlava metade das rotas comerciais do norte sentiu medo verdadeiro.Não o medo da derrota, mas o de ter provocado algo que não entendia.O barão se levantou e gritou:"Mandem um presente à Guilda Caelum! Dourado, raro, com selo pessoal! Digam que… que desejo conversar. Paz. Sim, paz!"

O mensageiro hesitou. "Senhor… depois de tudo que—""Agora!" rugiu o barão.O grito ecoou pelos corredores como o lamento de alguém que sabia que não tinha mais poder.A máscara de autoridade havia caído; restava apenas o pânico.

A fumaça ainda se dissipava quando Lucius e seu grupo voltaram a Valen.

O sol nascia no horizonte, tingindo o céu de laranja e violeta.A cidade estava calma, alheia à noite sangrenta que se passara nas florestas.A Guilda Caelum os aguardava com as portas abertas e o cheiro de pão fresco vindo do bar.

Friaren correu até eles assim que entraram."Vocês demoraram… e estão cobertos de cinzas."Lucius apenas sorriu, passando a mão nos cabelos do irmão. "O trabalho está feito."

Lyara observava de longe, braços cruzados."Então acabou?""Por enquanto," respondeu Kael, limpando a lâmina. "Mas o barão vai entender o recado."

Rogan, mais silencioso, conjurou um pequeno círculo mágico sobre a mesa principal — um artefato de análise mental."Lucius, as memórias que absorveu… quer que registremos?"

Lucius assentiu.A energia espiritual fluiu de sua testa, projetando breves imagens no ar: círculos dourados, runas de luz, curas, purificações, prismas radiantes.As magias de luz — do nível um ao seis — dançavam diante deles como visões de outro mundo.

Friaren, fascinada, se aproximou. "Magia da luz… achei que ninguém fora da Igreja da Luz usava isso."

"Exato," respondeu Lucius. "A maior parte dos magos de luz serve à Igreja, e o resto é caçado por ela. Mas agora nós temos algo que não pertence a ninguém."

Rogan analisou as runas projetadas. "Interessante… a estrutura interna dessas magias é estável. Pode usar isso para reforçar barreiras mentais e cura espiritual."

Lucius fechou os olhos por um instante, sentindo a energia fluir em seu interior.Sua alma pulsava — agora nível 8, firme, controlada, equilibrada entre luz e tempestade.Havia poder, mas também clareza.As lembranças dos magos mortos não o consumiam mais; agora, obedeciam.

Aurus rosnou baixo, deitado perto da lareira.Kael olhou para ele e depois para Lucius. "Ele sente o mesmo que eu… algo está se movendo na cidade."

Lucius não respondeu de imediato.Pegou um copo de vinho do balcão e observou o líquido balançar lentamente."Não é algo," disse por fim. "É alguém tentando esconder o medo."

Rogan cruzou os braços. "O barão?"

Lucius assentiu."Ele vai tentar se reconciliar. E é exatamente isso que eu quero."

"Você vai aceitar?" perguntou Friaren, confusa.

Lucius pousou o copo sobre a mesa, as pupilas azul-acinzentadas refletindo a chama do fogo."Por enquanto, sim. Porque paz… é a melhor máscara antes da guerra."

Naquela noite, enquanto a cidade dormia tranquila,um mensageiro trajado de preto saiu discretamente da mansão do barão, carregando um cofre dourado com o selo de Valcrest.

Dentro, uma carta selada com cera vermelha dizia:

"À Guilda Caelum —Que a luz da razão nos una, e o passado seja esquecido.— Barão Valcrest."

Lucius recebeu o presente na manhã seguinte, leu a carta e apenas sorriu."Ele aprendeu rápido," disse, colocando o selo sobre a chama da vela.A cera derreteu até virar um ponto escuro.

Friaren o olhou curiosa. "Vai aceitar o tratado?"

Lucius respondeu com serenidade:"Sim. E depois… decidiremos o que realmente vale manter em paz."

...

A Guilda Caelum repousava em silêncio.Do lado de fora, a cidade de Valen respirava calma após dias turbulentos — o comércio retomava o ritmo, as crianças corriam pelas ruas, e os rumores sobre os Espadas Negras já se tornavam lenda de taverna.

Mas Lucius, em seu quarto, estava distante de tudo isso.

O garoto se sentava no centro de um círculo mágico desenhado no chão com giz prateado.À sua volta, pequenas esferas de energia flutuavam, cada uma brilhando com um tom diferente: azul, verde, vermelho… e, no centro, uma de brilho puro — branca como o luar.

Era a luz.

Lucius fechou os olhos, concentrando-se na sensação que ela emanava.Diferente dos outros elementos, a luz não ardia, não cortava, não pressionava.Ela revelava.

A voz dele quebrou o silêncio:"A luz… não é apenas um elemento. É uma verdade que o mundo tenta esconder."

Durante as últimas noites, ele havia estudado as memórias do mago derrotado — um homem que dedicara décadas à magia luminosa, um ex-sacerdote da Igreja da Luz que buscou compreender o brilho sem venerar deuses.Nas lembranças, Lucius viu templos, rituais, orações.Mas também viu o medo.A Igreja chamava a luz de "pureza divina".Mas nas experiências do mago, ela era apenas uma das formas do poder primordial, tão impessoal quanto o fogo ou a terra.

Lucius levantou uma das mãos.Entre seus dedos, um feixe de luz condensou-se lentamente, até formar um pequeno prisma transparente.A energia tremulava, vibrando com uma frequência suave.

"Então é isso…" murmurou."A luz é o reflexo da alma. Quanto mais clara a intenção, mais forte o brilho. Mas quanto mais pura, mais frágil."

O prisma se desfez, e ele abriu os olhos — as pupilas azul-acinzentadas refletiam uma centelha dourada.A magia da luz não pedia força.Pedia clareza.

Lucius respirou fundo, sentindo o fluxo do poder mágico dentro da alma.A energia do relâmpago rugia — viva, agressiva, veloz.Mas agora, havia um novo tom: uma calma constante, uma respiração silenciosa que equilibrava o caos interior.

"Relâmpago é destruição… luz é revelação," pensou. "Juntas, formam entendimento."

Ele se levantou lentamente, o círculo se desfazendo em faíscas suaves.Enquanto caminhava até a janela, o amanhecer tingia o céu de dourado — o mesmo tom da magia recém-descoberta.

Aquele brilho não vinha de deuses, nem de bênçãos.Vinha da compreensão.

"É curioso," murmurou. "Os homens chamam a luz de divina… mas ela apenas mostra o que sempre esteve lá."

Por um instante, deixou que a energia luminosa se espalhasse pelo quarto, purificando o ar e cicatrizando pequenas marcas de batalha em suas mãos.Era uma sensação estranha — suave, mas profunda.Não o poder de um guerreiro.Mas o de alguém que via além da força.

No fundo da mente, ouviu a voz de Rogan ecoar das memórias antigas:

"Magia não é fé, Lucius. É percepção."

Ele sorriu."Então que percebam…"

A magia da luz pulsou uma última vez, e o brilho se dissipou como se o sol tivesse se escondido atrás das nuvens.Mas no peito de Lucius, algo permanecia aceso — uma chama serena, estável, que não queimava nem cegava.

A compreensão de um novo caminho.

E com ela, a certeza de que cada elemento era mais do que poder — era um fragmento da própria existência.

...

Na manhã seguinte, o salão principal da Guilda Caelum estava silencioso.Os primeiros raios do sol atravessavam as janelas altas, iluminando partículas de poeira que dançavam no ar.Lucius estava sozinho, em pé no centro do salão, com uma espada curta na mão direita.

O chão ao redor estava marcado por rachaduras.

Respiração lenta.Postura firme.A aura de douqi dourado fluía pelo seu corpo, misturando-se à pulsação constante de poder mágico.

Por um momento, ele apenas ficou parado — sentindo.

O douqi vibrava nas veias como fogo líquido, movendo-se em padrões circulares que partiam do abdômen e se espalhavam até os braços.Mas havia resistência.O corpo ainda não estava preparado para suportar a pressão que o poder exigia.

Lucius cerrou os punhos.O ar ao redor tremeu, e a espada brilhou com uma película dourada — o douqi nível 8 começava a estabilizar.

"Finalmente…" murmurou.

Havia demorado dias, talvez semanas, desde a última vez que se dedicara a sério ao cultivo físico.Entre batalhas, magias e decisões, ele havia negligenciado o pilar mais simples: o corpo que sustenta tudo.

Fechou os olhos e começou a canalizar o douqi novamente, desta vez de forma lenta e controlada.O som de ossos e músculos se ajustando ecoou baixo, seguido por um leve tremor no chão.Cada respiração fazia o poder circular em um ciclo completo — um fluxo perfeito entre entrada e liberação.

De repente, um estalo.A aura se expandiu e envolveu o corpo inteiro em uma camada dourada pulsante.

Lucius abriu os olhos.O azul-acinzentado de suas pupilas parecia agora mais vívido, mais desperto.

"Corpo, alma e magia…" disse em voz baixa. "Se um fica para trás, os outros caem junto."

Guardou a espada e inspirou fundo.As mãos ainda tremiam, não de fraqueza, mas da descarga de energia recém-estabilizada.

No andar superior, Friaren observava, apoiada no parapeito.Seu olhar calmo trazia uma mistura de admiração e leve preocupação.

"Você está forçando demais o corpo," disse ela, descendo lentamente as escadas.

Lucius sorriu, enxugando o suor do rosto."É bom sentir dor de vez em quando. Significa que ainda estou vivo."

"Você é um idiota.""Um idiota determinado."

Friaren balançou a cabeça, mas não insistiu.Ela sabia que Lucius raramente falava algo sem propósito.

Aurus, o lobo, entrou no salão e se deitou próximo ao centro, a cauda batendo ritmicamente no chão.O olhar atento da criatura parecia entender cada movimento do garoto — uma espécie de cumplicidade silenciosa.

Lucius passou a mão na cabeça do lobo."Não dá pra depender só da alma, né, parceiro? Se a alma é a lâmina, o corpo é o cabo. Um sem o outro, se quebra."

O lobo respondeu com um leve rosnado afirmativo.Friaren riu suavemente."Você conversa demais com ele.""E ele entende mais que muita gente."

Ela cruzou os braços. "Vai treinar de novo amanhã?""Todos os dias. Até o corpo aguentar o mesmo que a alma."

Lucius olhou para as mãos.Havia nelas um brilho tênue de douqi dourado — não selvagem como antes, mas estável, maduro.O reflexo de quem começava a dominar não só o poder, mas também o próprio limite.

Do lado de fora, o sino da cidade tocou, anunciando o início de um novo dia.Dentro da Guilda Caelum, o ar parecia diferente — mais denso, mais vivo.Como se algo novo estivesse prestes a nascer.

E Lucius sabia:o caminho da força verdadeira não era apenas destruir, mas suportar.

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